DIA DO CORDELISTA
Neste dia do cordelista, segue crônica que escrevi a pedido da Revista de Cultura da AJUFE, que deverá ser publicada nos próximos dias. Na verdade, pediram-me um artigo sobre o cordel de ontem e de hoje, mas achei que ficaria meio chato um artigo no estilo acadêmico. Então fiz na forma de crônica. O texto é o seguinte: Marcos Mairton
Naquele dia, o velho cantador chegou à feira um pouco mais tarde que de costume. As barracas já estavam quase todas armadas e havia muita gente transitando entre elas, mas o seu lugar estava vazio, como que esperando sua chegada. Ele montou o tamborete com assento de couro – que já lhe acompanhava há anos – e, antes de abrir a mala dos cordéis e espalhá-los sobre a lona que trouxera dobrada, sentou um pouco para descansar. Depois tirou sua viola do saco e conferiu a afinação. Ensaiou alguns acordes, temperou a garganta e começou a cantar:
Bom dia para a senhora
E para o senhor que passa.
Vou começar mais um dia
Cantando aqui nesta praça.
Pois se eu nasci pra cantar
Eu canto para lhes dar
O que Deus me deu de graça...
Era uma estrofe antiga. Já não recordava a primeira vez que havia começado o dia daquela maneira, saudando o início de mais uma jornada e as pessoas que passavam. Lembrou de uma época em que começava a juntar gente antes mesmo de arrumar os seus cordéis sobre a lona, mas isso havia sido muito tempo atrás. As pessoas agora andavam cada vez mais apressadas e, enquanto ele entoava seus primeiros versos, elas continuavam passando sem lhe dar muita atenção. De vez em quando, alguém parava, olhava um pouco, mas logo continuava o seu caminho.
O velho cantador parecia não se incomodar. Apesar de os pulmões já não terem a potência de antigamente, soltava a voz, lembrando das cantorias comuns em sua infância no interior do nordeste brasileiro. Desde criança, não perdia uma oportunidade de assistir às apresentações dos violeiros, aqueles homens que dominavam tão bem a arte de rimar e metrificar, com suas violas enfeitadas e suas vozes poderosas. E juntava gente para assistir. Um dia, conseguiu arrumar algum dinheiro e comprar sua própria viola, e não parou mais de cantar. Nunca foi um grande improvisador e, talvez por isso, não alcançou nenhuma projeção como repentista, mas conhecia as formas e as métricas necessárias ao ofício. Obras de seis pés, ou sextilha:
Agora vem-me à lembrança
Os passos do meu sertão
Pomba de bando, asa branca
Marreca, socó, carão,
Também pássaro pombinha
Arara e currupião.
Obras de sete pés, ou septilha:
Uma Carta de ABC
E uma velha Tabuada,
Um punhado de cordéis
Numa maleta encantada,
Me deram luz do saber.
Ali eu pude aprender
Até a História Sagrada.
E até martelo agalopado, pois sem ele um cantador não sobrevive:
Admiro demais o ser humano
que é gerado num ventre feminino
envolvido nas dobras do destino
e calibrado nas leis do Soberano
quando faltam três meses para um ano
a mãe pega a sentir uma moleza
entre gritos lamúrias e esperteza
nasce o homem e aos poucos vai crescendo
e quando aprende a falar já é dizendo:
quanto é grande o poder da Natureza.
Fraco na criação de enredos e rimas, o velho cantador foi fazendo a sua fama mais como declamador de cordel do que como repentista. Para ser bom repentista é preciso ligeireza de pensamento, facilidade para usar as palavras e criar os versos na hora, de acordo com o tema oferecido, chamado mote. Já a declamação de cordel requer, antes de tudo, boa memória, e isso o velho tinha de sobra. Apesar de ler com dificuldade, decorava um folheto de cordel numa velocidade espantosa. E nunca mais esquecia. Assim, sabia, de cor, glosas sobre os mais variados assuntos, além de vários dos mais conhecidos “romances”, aqueles cordéis que trazem uma história completa, com heróis, aventuras e alguma fantasia misturando-se à realidade. “O Romance do Pavão Mysteriozo”, “Juvenal e o Dragão”, “O Cavalo que Defecava Dinheiro”... Nos bons tempos da feira, as pessoas pediam e ele ia narrando aquelas aventuras em verso, dando-lhes uma melodia que combinasse com a métrica de cada um. Um dos que mais gostava era a “Cantiga do Vilela”:
Meu povo, preste atenção
Ao que agora eu vou contar
De um homem muito valente
Que morava num lugar
E até o próprio Governo
Tinha medo de o cercar..
Vilela era natural
Do sertão pernambucano,
E ele, desde o princípio
Que tinha o gênio tirano:
Comete o primeiro crime
Com a idade de dez anos.
Com doze anos de idade,
numa véspera de São João,
Vilela mais o seu mano
Tiveram uma alteração;
Só por causa de um cachimbo,
Vilela mata o irmão.
Com quinze anos de idade,
Passando os três ao depois,
Vilela monta a cavalo,
Vai ao campo atrás duns bois;
Encontrou quatro rapazes;
Atirou num, matou dois.
E por aí prosseguia... Talvez o velho cantador não tenha noção da importância do seu ofício na preservação dessa arte tão brasileira, vinda da península ibérica nos idos do século XVI, embora não se saiba exatamente quando. A expressão “literatura de cordel” decorreria do fato de os folhetos serem expostos pendurados em barbantes, em cordéis. O velho cantador já ouvira falar disso, embora nunca tenha vendido os seus dessa maneira. Sempre os levou para a feira em uma mala e espalhou sobre a lona, no chão mesmo. Pendurado ou não, o cordel foi sendo reconhecido no Brasil, especialmente no Nordeste, não pela maneira como era exposto para venda, e sim pela forma rimada e metrificada de tratar dos assuntos mais diversos, contando histórias, dando notícias, fazendo homenagens e críticas. Aos poucos, ganhou tanta importância que chegou a ser considerado o “jornal do sertão”. Dizem até que, quando Lampião morreu, muita gente só acreditou quando saíram os primeiros cordéis contando o ocorrido.
Em um país de muitos analfabetos, a forma rimada e metrificada de se expressar, facilitava a memorização e permitia que a história fosse passada oralmente. Alguns mais interessados, como o velho cantador, aprenderam a ler por causa do cordel. De tanto ouvir os outros contarem as histórias, iam manuseando os folhetos, pedindo ajuda a quem sabia, até que acabavam aprendendo.
Apesar de o cordel ter essa bela história, os tempos foram se modernizando e os fregueses do velho cantador escasseando. Cada vez mais, arrumava seus folhetos sobre a lona e via pouca gente parar para comprar. Como nunca economizou o que ganhou nos bons tempos da juventude, o sustento foi dependendo cada vez mais da pensão da falecida esposa e de alguma ajuda dos filhos, que moram na capital.
– Os sertanejos se acostumaram a ver televisão e só querem saber de novela. Quem acaba comprando os folhetos são os turistas, quando aparecem – comentou com um de seus poucos fregueses daquele dia.
Talvez o velho cantador não soubesse que essa queda de movimento na feira não significava que o interesse pelo cordel estivesse acabando, mas apenas mudando de forma... E de lugar. Bastaria ele acessar a Internet para perceber isso. Digita-se a expressão “literatura de cordel” no Google, e logo surgem mais de duzentas mil referências. Tiram-se as aspas e esse número sobre para mais de trezentas mil. Encontra-se de tudo na rede. São sites com cordéis antigos e novos, textos sobre a história do cordel, biografia de seus nomes mais proeminentes e vários artigos acadêmicos abordando o assunto.
A par disso, as estruturas de rima e de métrica do passado continuam a ser usadas pelos cordelistas dos tempos atuais, em um encontro inacreditavelmente harmônico da tradição com a modernidade. Obras de seis, sete, oito e dez pés; versos de sete, dez ou onze sílabas; moirões, martelos e galopes à beira-mar... O cordel continua se mostrando um excelente instrumento para abordar questões sociais e contar histórias fantásticas, mas também para tratar de temas mais recentes como a tecnologia. Encontrado em páginas da Internet, diz o “Cordel do Software Livre”
[2]:
Computador e internet
Vivem no nosso Presente
Mesmo sendo tão ligados
Cada um é diferente
Mas toda coisa criada
Não serviria pra nada
Se não fosse para gente
Como uma calculadora
Um bocado mais sabida
Nasceu o computador
Pra fazer conta e medida
Mas foi se modernizando
Seu poder acrescentando
E o "programa" ganhou vida
E seguem as estrofes sobre esse assunto tão diferente daqueles tratados nos primeiros cordéis. O velho cantador não poderia imaginar uma coisa dessas: o cordel se desprendendo do folheto e se difundindo no mundo virtual da Internet. Ao mesmo tempo, a Internet virando tema de cordéis e repentes...
Mas as transformações pelas quais o cordel vem passando não ficam nisso. Quando o velho cantador se queixa que só os turistas se interessam por seus folhetos, talvez nem imagine que não apenas turistas, mas também professores e alunos de inúmeras escolas brasileiras são hoje grandes apreciadores do cordel. Os educadores brasileiros estão redescobrindo o cordel como ferramenta para o aprendizado. A cada dia encontram-se mais projetos de escolas estudando o cordel – como manifestação cultural – e usando o cordel para que os próprios alunos desenvolvam a leitura, a escrita e a expressão artística. Coletâneas de folhetos, reunidos em livro, estão em todas as livrarias. Obras de literatura infantil ilustradas, com o texto em cordel, são adotadas com entusiasmo nas escolas. E há os clássicos da literatura adaptados para o cordel, como “O Corcunda de Notredame”, “Os Miseráveis”, “A Ambição de Macbeth” e contos de Machado de Assis[3], dentre outros.
Se soubesse dessas coisas, o velho cantador não sentiria apenas nostalgia ao expor seus folhetos na feira, mas também orgulho de ver o cordel ocupando novos espaços e novas mídias. Mas, ele não terá oportunidade para isso. Já ouvira falar em computadores e Internet, mas como algo muito distante de sua realidade. Considerava-se velho para mexer com essas coisas.
Naquele dia, sentia-se cansado, lento, com a vista embaçada. Quando tentava tomar fôlego para cantar um pouco mais alto, era como se algo pressionasse o seu peito. Indisposto, voltou mais cedo para o barraco compartilhado com sua viola e seus folhetos. Depois de tomar um pouco de mingau de aveia que ele mesmo preparou, deitou na rede, apagou a luz e ficou esperando o sono chegar. Foi então que começou a ouvir alguns acordes de viola, primeiro longe, depois se aproximando, até chegar à porta do seu barraco. Alguém começou a cantar um “dez pés em quadrão”:
Velho que canta na feira
E mora nesse barraco,
Põe a viola no saco,
Encerra essa brincadeira
De passar a tarde inteira
Como antigos menestréis,
Querendo mostrar que és,
Para o povo ignorante,
Mais que um comerciante
De repentes e cordéis.
Do jeito que estava deitado na rede, o velho cantador respondeu no ato:
De repentes e cordéis
Eu sou mais que vendedor.
Sou um velho cantador
De “martelos” e “dez pés”.
Não inverta os papéis,
Você que canta aí fora,
Vem chegando a essa hora,
Mas sei que seu pensamento
É vender seu instrumento
Para poder ir embora.
Ele próprio se impressionou com a facilidade com que respondeu aos versos provocativos que ouvira. Conhecia suas limitações como repentista, mas naquela noite os versos fluíram fáceis. O entusiasmo renovou-lhe as energias. Levantou-se num salto, pronto para pegar a viola e continuar a cantoria lá fora, mas logo percebeu que ao redor da sua rede havia vários violeiros afinando seus instrumentos, sorrindo para ele, envoltos em uma luz que só poderia ser coisa do sobrenatural.
O velho cantador entendeu o que estava acontecendo e sorriu também. Agora sabia que as coisas fantásticas que aconteciam nos romances de cordel não eram apenas fruto da imaginação de seus autores. Enquanto cumprimentava cada um daquele grupo de cantadores, alguém começou um “martelo” mais ou menos assim:
Sê bem vindo, bom e velho cantador,
Neste mundo em outra dimensão
Já cumpriste na terra tua missão
De ser da nossa arte um difusor.
Quando eu lhe chamei de vendedor
De folhetos de cordel em plena feira
Saiba que foi somente brincadeira
Na verdade, foste muito importante
Pra manter o cordel vivo e pulsante
No cenário da cultura brasileira.
A cantoria prosseguiu noite adentro, com todos aqueles poetas se revezando no cantar de seus versos, e o velho cantador nunca mais foi visto na feira.
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[1] Este exemplo e os dois seguintes foram extraídos da obra “Cantadores” de Leonardo Mota, na qual constam outras métricas. Também disponível em http://mundocordel.blogspot.com/2007/10/tcnica-de-fazer-cordel.html.
[2] Obra de autoria de Cárlisson Galdino, disponível em http://www.dicas-l.com.br/dicas-l/20071223.php.
[3] “O Corcunda de Notre Dame”, Ed. Nova Alexandria, de João Gomes de Sá; “Os Miseráveis”, Ed. Nova Alexandria, de Klévisson Viana; “A Traição de Macbeth”, Ed. IMEPH, de Arievaldo Viana; Marcos Mairton adaptou “A Cartomante” e Rouxinol do Rinaré “O Alienista”, ainda não publicados.
Muito bom Mairton!!!!
ResponderExcluirVocê passei pelas modalidades de cordéis com exemplos. Aborda a chegada da televisão. O que passaou e continuidade num texto criativo, ótimo de se ler. Abordou muito bem o assunto
Um abraço
Dalinha