Histórias de Poetas
(do livro "A literatura de cordel no Nordeste do Brasil", de Julie Cavignac. Tradução Nelson Patriota)
Literatura de cordel é o nome que se dá à literatura popular ibérica vendida nas ruas pendurada em barbantes (BAROJA, 1988). A lenda dos fascículos das edições Luzeiro faz referência explícita ao uso do barbante tanto em Portugal como no Brasil:
O nome literatura de cordel provém de Portugal e data do século XVII. Esse nome deve-se ao cordel ou barbante em que os folhetos ficavam pendurados, em exposição. No Nordeste brasileiro, mantiveram-se o costume e o nome, e os folhetos são expostos à venda pendurados e presos por pregadores de roupa, em barbantes esticados entre duas estacas, fixadas em caixotes.
Essa definição sumária e folclórica, que insiste na origem ibérica do folheto, não reflete em nada a realidade da literatura popular em verso ainda bastante viva e muito original, mas resume bem os traços caricaturais geralmente ressaltados para descrever o fenômeno aos turistas e aos curiosos.
A literatura de cordel do Nordeste brasileiro começou a aparecer sob sua forma atual no fim do século XIX (TERRA, 1983, P. 1-16). São relatos em versos difundidos sob a forma de livretos de oito, dezesseis ou trinta e duas páginas. Até 1917, Ruth Terra observa que os folhetos de dezesseis páginas dominam, e isso até 1930. Aparecem romances de trinta e duas e quarenta e oito páginas. Nesse caso, algumas histórias se dividem em vários volumes: os diferentes episódios podem ser reagrupados depois em um só livro – são as “histórias completas” (TERRA, 1983, P. 33-45)[1]. Distinguem-se, de fato, os folhetos, mais curtos, dos romances por seu número de páginas e pelo assunto tratado. Os folhetos que tratam de um problema particular são, antes de tudo, destinados a informar, por isso abordam de preferência temas da atualidade. Os romances, por sua vez, descrevem mundos maravilhosos onde os heróis vivem mil e uma aventuras, sofrem, amam, vingam-se, são traídos e são sempre recompensados no fim. A “história completa”, forma abandonada hoje, era publicada em vários volumes e podia comportar até sessenta e quatro páginas. Impressa em papel de má qualidade, a história é ilustrada por um desenho, uma fotografia ou ainda uma gravura sobre madeira, chamada xilogravura, técnica que experimentou um desenvolvimento autônomo, paralelamente à literatura de cordel. As vinhetas – desenhos destinados a ilustrar a capa ou, mais raramente, a história – dominam até 1930. As fotografias, que podem ser reproduções de artistas de cinema ou de cartões postais, aparecem por volta de 1914. Contrariamente ao que se poderia acreditar, no cordel e nas xilogravuras aparecem simultaneamente aos clichês, e esta técnica teria sido adotada para atender à escassez de fotografias em tempos de guerra. Com efeito, a primeira menção a uma xilografia data de 1935, e esse processo se desenvolveu nos anos quarenta. Os desenhos, por sua vez, aparecem principalmente nas capas dos folhetos recentes (SOBREIRA, 1948; SOUZA, 1981).
Como se trata de poesia, a versificação não pode faltar: sextilha, septilha ou décima são as formas mas correntes[2]. Esses relatos em verso são vendidos, declamados ou cantados nas feiras, nos centros de romarias e nos lugares públicos do Nordeste, tanto no interior quanto no litoral (DIEGUES JR., 1975; SOUZA, 1981). Eles são comercializados pelos próprios autores ou por revendedores que se deslocam de cidade em cidade. Os folheteiros, poetas intinerantes ou vendedores ambulantes, se distinguem dos poetas impressores. Estes últimos, que editam e publicam também prospectos eleitorais, calendários, cartões de felicitações, anúncios publicitários, conservam uma parte dos folhetos que produzem, a "conga", a fim de cobrir os custos de edição (ARANTES, 1982). Por exemplo, Francisco das Chagas Batista, proprietário da Tipografia Popular Editora, em João Pessoa, no começo do século XX, imprimia folhetos e "livros de prateleiras, faturas, envelopes, blocos para cartas comerciais, cartas, circulares, cartões comerciais, de visita, participação de boas festas" (TERRA, 1983, p. 27). O folheto aparece na feira geralmente no meio de outros objetos, à primeira vista sem relação com a atividade poética: revistas e livros de ocasião, coletânea de canções, almanaques, orações, rosários, pomadas milagrosas, raízes e plantas medicinais, brinquedos para crianças etc. Assim, se o poeta é artista, cantor, ele é antes de tudo comerciante e vendedor ambulante; seu microfone serve muitas vezes para fazer anúncios públicos na feira. Para anunciar, por exemplo, uma festa local. Ele recita, canta ou lê a última história que acaba de ser publicada, fazendo uma pausa antes do desfecho para que o leitor, curioso de conhecer o final, se apresse em comprar a inacreditável história da mula que fala (O jumento que falou no Nordeste), as facéias de João Grilo, as aventuras do célebre cangaceiro Lampião, o amor contrariado de Pedrinho e Juliana ou de Zezinho e Mariquinha, ou, enfim, a última profecia de Frei Damião, descrevendo em detalhes o apocalipse próximo[3].
Hoje, essa publicação artesanal é cada vez mais rara e a venda, no Nordeste, só está assegurada regularmente nos grandes centros urbanos e cidades do agreste (Recife, Fortaleza, João Pessoa, Natal, Caruaru, Campina Grande, Mossoró, Caicó etc.) e nas cidades-santuário - centros importantes de romaria que reúnem fiéis vindos de todos os estados do Nordeste e do país, como Juazeiro do Norte, Canindé ou Baturité, no Ceará. Encontram-se, irregularmente, folhetos nas feiras semanais das pequenas cidades do interior do Rio Grande do Norte, sendo que os folheteiros são atraídos pelos centros comerciais mais importantes. As tipografias artesanais são cada vez mais raras e os poetas recorrem com muita frequência à fotocópia para reduzir o custo elevado da impressão[4]. Os únicos folhetos que se encontram em grande difusão no Sul do país e, paradoxalmente, no Nordeste, são aqueles publicados pelas edições Luzeiro, de São Paulo, onde existe uma forte concentração de emigrantes nordestinos. Essa tendência, notada desde o começo dos anos 1980, principalmente por Antonio Arantes (1982) e Candace Slater (1984), confirma-se claramente dez anos depois, sem que se possa falar da morte do cordel, embora tantas vezes anunciada[5].
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NOTAS:
[1] O termo folheto será utilizado para designar tanto os romances impressos como os folhetos, a título de simplificação da exposição. É preciso também distinguir os romances publicados em folhetos dos romances cantados, que se encontram vivos na memória dos habitantes do litoral nordestino. O romanceiro do Rio Grande do Norte é conhecido através de Dona Militana, Militana Salustino do Nascimento, natural de São Gonçalo do Amarante, que canta dezenas de romances; é a mais famosa das romanceiras, por ter gravado um disco em 2002 intitulado Cantares (projeto Nação Potiguar) e ter recebido a medalha da Ordem do Mérito Cultural em 2005. São poemas octossilábicos cantados desde o século XV e XVI na Península Ibérica e que, no Brasil, encontram-se desde o século XVIII. No século XIX, foram coletados sistematicamente por Pereira da Costa, Celso Magalhães, Sílvio Romero, Gustavo Barroso, Câmara Cascudo e Jackson da Silva Lima (GURGEL, 1993; SANTOS, 1997).
[2] As sextilhas, septilhas ou décimas são estrofes de seis, sete e dez versos, com as seguintes estruturas: sextilha - ABABAB ou AABCCB; a septilha - ABCBDDB; a décima ou verso de dez linhas, obra de dez pés - ABBAACCDDC. Diz-se também cantar mote, pois o último ou os dois últimos versos é geralmente reservado ára servir de mote que, cantado pelos dois cantadores, serve de base para continuar a improvisação poética (Brasil caboclo, dez de queixo caído). Para mais detalhes, ver: Leite Filho, 1985; Linhares e Batista, 1982; Maxado, 1980; Romero, 1977; Santos, 1977.
[3] Cf. anexo para as referências dos folhetos.
[4] Cf. os folhetos de J. Dominsilva.
[5] Cf. A situação não se modificou substancialmente desde que o texto foi escrito: se não encontramos uma significativa renovação da produção, existem, porém, algumas tentativas de divulgação dos textos clássicos organizados em antologias, como na coleção Biblioteca de Cordel da editora Hedra, que já editou vários livros sobre a obra de poetas reconhecidos: Expedito Sebastião da Silva, Patativa do Assaré, Cuíca de Santo Amaro, Manoel Caboclo, Rodolfo Coelho Cavalcante, Zé Vicente, João Martins Athayde, Minelvino Francisco Silva, Oliveira de Panelas etc.
Como se trata de poesia, a versificação não pode faltar: sextilha, septilha ou décima são as formas mas correntes[2]. Esses relatos em verso são vendidos, declamados ou cantados nas feiras, nos centros de romarias e nos lugares públicos do Nordeste, tanto no interior quanto no litoral (DIEGUES JR., 1975; SOUZA, 1981). Eles são comercializados pelos próprios autores ou por revendedores que se deslocam de cidade em cidade. Os folheteiros, poetas intinerantes ou vendedores ambulantes, se distinguem dos poetas impressores. Estes últimos, que editam e publicam também prospectos eleitorais, calendários, cartões de felicitações, anúncios publicitários, conservam uma parte dos folhetos que produzem, a "conga", a fim de cobrir os custos de edição (ARANTES, 1982). Por exemplo, Francisco das Chagas Batista, proprietário da Tipografia Popular Editora, em João Pessoa, no começo do século XX, imprimia folhetos e "livros de prateleiras, faturas, envelopes, blocos para cartas comerciais, cartas, circulares, cartões comerciais, de visita, participação de boas festas" (TERRA, 1983, p. 27). O folheto aparece na feira geralmente no meio de outros objetos, à primeira vista sem relação com a atividade poética: revistas e livros de ocasião, coletânea de canções, almanaques, orações, rosários, pomadas milagrosas, raízes e plantas medicinais, brinquedos para crianças etc. Assim, se o poeta é artista, cantor, ele é antes de tudo comerciante e vendedor ambulante; seu microfone serve muitas vezes para fazer anúncios públicos na feira. Para anunciar, por exemplo, uma festa local. Ele recita, canta ou lê a última história que acaba de ser publicada, fazendo uma pausa antes do desfecho para que o leitor, curioso de conhecer o final, se apresse em comprar a inacreditável história da mula que fala (O jumento que falou no Nordeste), as facéias de João Grilo, as aventuras do célebre cangaceiro Lampião, o amor contrariado de Pedrinho e Juliana ou de Zezinho e Mariquinha, ou, enfim, a última profecia de Frei Damião, descrevendo em detalhes o apocalipse próximo[3].
Hoje, essa publicação artesanal é cada vez mais rara e a venda, no Nordeste, só está assegurada regularmente nos grandes centros urbanos e cidades do agreste (Recife, Fortaleza, João Pessoa, Natal, Caruaru, Campina Grande, Mossoró, Caicó etc.) e nas cidades-santuário - centros importantes de romaria que reúnem fiéis vindos de todos os estados do Nordeste e do país, como Juazeiro do Norte, Canindé ou Baturité, no Ceará. Encontram-se, irregularmente, folhetos nas feiras semanais das pequenas cidades do interior do Rio Grande do Norte, sendo que os folheteiros são atraídos pelos centros comerciais mais importantes. As tipografias artesanais são cada vez mais raras e os poetas recorrem com muita frequência à fotocópia para reduzir o custo elevado da impressão[4]. Os únicos folhetos que se encontram em grande difusão no Sul do país e, paradoxalmente, no Nordeste, são aqueles publicados pelas edições Luzeiro, de São Paulo, onde existe uma forte concentração de emigrantes nordestinos. Essa tendência, notada desde o começo dos anos 1980, principalmente por Antonio Arantes (1982) e Candace Slater (1984), confirma-se claramente dez anos depois, sem que se possa falar da morte do cordel, embora tantas vezes anunciada[5].
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NOTAS:
[1] O termo folheto será utilizado para designar tanto os romances impressos como os folhetos, a título de simplificação da exposição. É preciso também distinguir os romances publicados em folhetos dos romances cantados, que se encontram vivos na memória dos habitantes do litoral nordestino. O romanceiro do Rio Grande do Norte é conhecido através de Dona Militana, Militana Salustino do Nascimento, natural de São Gonçalo do Amarante, que canta dezenas de romances; é a mais famosa das romanceiras, por ter gravado um disco em 2002 intitulado Cantares (projeto Nação Potiguar) e ter recebido a medalha da Ordem do Mérito Cultural em 2005. São poemas octossilábicos cantados desde o século XV e XVI na Península Ibérica e que, no Brasil, encontram-se desde o século XVIII. No século XIX, foram coletados sistematicamente por Pereira da Costa, Celso Magalhães, Sílvio Romero, Gustavo Barroso, Câmara Cascudo e Jackson da Silva Lima (GURGEL, 1993; SANTOS, 1997).
[2] As sextilhas, septilhas ou décimas são estrofes de seis, sete e dez versos, com as seguintes estruturas: sextilha - ABABAB ou AABCCB; a septilha - ABCBDDB; a décima ou verso de dez linhas, obra de dez pés - ABBAACCDDC. Diz-se também cantar mote, pois o último ou os dois últimos versos é geralmente reservado ára servir de mote que, cantado pelos dois cantadores, serve de base para continuar a improvisação poética (Brasil caboclo, dez de queixo caído). Para mais detalhes, ver: Leite Filho, 1985; Linhares e Batista, 1982; Maxado, 1980; Romero, 1977; Santos, 1977.
[3] Cf. anexo para as referências dos folhetos.
[4] Cf. os folhetos de J. Dominsilva.
[5] Cf. A situação não se modificou substancialmente desde que o texto foi escrito: se não encontramos uma significativa renovação da produção, existem, porém, algumas tentativas de divulgação dos textos clássicos organizados em antologias, como na coleção Biblioteca de Cordel da editora Hedra, que já editou vários livros sobre a obra de poetas reconhecidos: Expedito Sebastião da Silva, Patativa do Assaré, Cuíca de Santo Amaro, Manoel Caboclo, Rodolfo Coelho Cavalcante, Zé Vicente, João Martins Athayde, Minelvino Francisco Silva, Oliveira de Panelas etc.
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