terça-feira, 23 de março de 2010

Cordel em Prosa



TOMÉ

Adauto Suannes


"Quando se aproximaram de Jerusalém e chegaram a Betfagé, junto do monte das Oliveiras, enviou Jesus dois discípulos, dizendo-lhes: Ide àquela aldeia que está lá adiante e logo achareis uma jumentinha presa e com ela um jumentinho; desatai-a e trazei-mos"

(Mt 21, 1-2 )



Eu tinha um cavalo chamado Tomé. Comia da alfafa, do arroz e feijão. Bebia cerveja, também guaraná. As flores amava, os prados corria, o ar respirava, com muita alegria. Meu bom cavalinho, chamado Tomé, também galopava, na ponta do pé. Plect, plect, plect, plé.

O dia nascendo, o sol bocejando e o bravo Tomé de há muito trotando. Tomé trabalhava, trabalhava e trabalhava. Meu pai, um leiteiro, inda madrugadinha, saía p'las ruas, com disposição. Mortinho de sono, papai na boléia balança pra lá, balança pra cá, ao trote miúdo do meu cavalim. Sabido, ensinado, Tomé dispensava ordens e mandos. Casa da Eulália, da Vera ou Rosinha, parava o cavalo, bem junto ao portão. Meu pai acordava, descia bem presto, pegava a garrafa e cumpria a missão.

Vai dia, vem dia; sai mês, entra mês; os anos passando, meu pai mais Tomé seu leite entregando. A neve do tempo - se diz na poesia - pintava o cabelo do nosso leiteiro. Tal como se o leite quisesse marcá-lo de um modo especial pra que se lembrassem, agora e no sempre, o que de lembrar carecia mais não. Feliz ele era, ali se dizia, entrega seu leite com sastifação.

Um dia na vila aparece um pastor. Parece afobado, tarveis preocupado, buscando, indagando, quem sabe lá o quê? Encontra meu pai, conversam bastante. Pondera um de cá; insiste um de lá. E eu só na janela, de longe espiando, mirando lá fora, sem nada entender. O homem - parece - termina a conversa. A mão no chapéu, sorriso na boca, despede-se humilde.

Meu pai entra logo. Eu corro pra ele, me atiro em seus braços. Costume já velho, que a gente mantinha, quando ele voltava, saudade era eterna.

- Senta fio, mode proseá.

O ar era grave, a gente sentia. Olhava pra o chão, então pra parede. Meu peito sentindo o ar rarear.

- Coisa grave, pai?

- Pense não. Escute premero, adespois entristeça, se caso.

Cheguei-me e sentei, fiado na fala, no rosto, nos gestos do pai que eu amava, amigo que era, certeza eu só tinha que tudo, por certo, melhor sairia, possível devera, no modo de ser.

- Diz que a léguas, coisa longe, tem um homem, bom de fato, carecendo de um jumento, pra mode entrar na cidade, no cumprir de uma promessa. Campearam pelas vilas, procuraram nos atalhos, removeram céus e terras, e jumento não acharam. Tomé, seu cavalim ...

Mais não disse. Carecia. Mãos cruzadas, rosto baixo. Eu quis falar coisa alguma. Não saiu. Imagens ficaram bailando nos olhos, lágrimas soltas corriam na cara. Ficamos parados, ali dois amigos, sem falar nem saber que dizer.

- Se é promessa, pai, que se cumpra. Quem somos nós diante de Deus? Deus dá - louvado seja! - Deus leva - louvado seja! Tudo é dEle, nada é nosso. Não foi isso que o sor me ensinou nesses tempos todos? Então por que o choro?

Meu pai ergueu o rosto e uma luz vinha lá da cara dele. Os olhos pareciam duas pedras preciosas, turmalindas brilhando, brilhando. Trocamos abraço longo, sentido, sem dizer palavra. Nem não carecia. Dia seguinte, manhãzinha, veio o moço buscar o Tomé. Levou. - É promessa, menino.

- Que se cumpra!

Cumpriu-se. No dia marcado, fui assistir a entrada do forasteiro na cidade. Tomé vinha todo enfeitado com flores nos arrelhos. Trazia a cabeça altiva, empinada. A pelugem branca até brilhava de tão limpa. À sua passagem, as pessoas atiravam flores no chão, que ele pisava com raro garbo. Folhas de palmeiras eram acenadas pra o Tomé, que balançava a cabeça, agradecido. Dava gosto ver sua alegria. Até parecia que ele se havia preparado a vida toda praquele momento. Um momento de glória, de consagração.

Tomé foi-se com o moço da promessa.

Vez em quando, tardinha, no repousar do sol, olhando o céu, parece que as nuvens formam a cara do meu cavalinho. Ele me sorri satisfeito. Conversamos longamente, até o sol se pôr de fato.

Maluquice a minha. Então já se viu cavalo entrar no céu?


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Do livro "Cristo, hoje", Editora Loyola (esgotado)
Fonte: Migalhas, 22 de dezembro de 2006 - Nº 1.563.
Agradecimento: Este texto me foi encaminhado gentilmente por Abílio Pereira Neto, a quem agradeço, como também ao autor, Adauto Suannes, por esta rica contribuição para MundoCordel.

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