sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Literatura de cordel na Expocom


O CORDEL QUE VIROU RADIONOVELA

Uma das maiores alegrias que tive este ano foi ouvir a adaptação para radionovela do meu cordel “O advogado, o diabo e a bengala encantada”, feita por alunos de Jornalismo da Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Sempre tive um carinho especial por esse cordel, pois foi o primeiro que publiquei em folheto. Foi por meio da Lira Nordestina, quando eu morava em Juazeiro do Norte-CE.

A adaptação acabou sendo vencedora da
Expocom Nordeste 2007, realizada em Salvador, e nestes dias 30 de agosto a 02 de setembro de 2007 está concorrendo na Expocom Nacional.

Torcendo por seu êxito, apresento a seguir o texto original completo, mas antes, veja a ficha técnica da obra adaptada e baixe o
MP3.


FICHA TÉCNICA
Rádio novela com texto adaptado do cordel de Marcos Mairton da Silva.

Resumo: O drama acontece em Fortaleza, onde um advogado sai para desopilar no final de expediente. Ao chegar no bar que costuma frequentar, logo é abordado por uma figura que pede para senta-se a sua mesa. Depois de muita conversa, o advogado acaba descobrindo que o sujeito é na verdade o satanás e tenta escapar. O diabo não gosta e chama sua turma para atacar o "desafiante", que sem forças para enfrentar a legião de demonios convoca o Padim Ciço para ajuda-lo.

Professora: Ana Paula Farias

Monitora: Maria Isabel

Alunos (Turma de Rádio Jornalismo 1 - 2006.1)

Cláudio Neto: O Véi

Fábio Thé: Dr. Jorge

Clebiana Kate: Dona Jandira

Leonardo Capibaribe: Cão Homi

Ronaldo Pinto: Diretor, editor e produtor.

Samara Passos: Cão Muié

Thiago Sampaio: Produtor e narrador

Vitória Costa: Lindinha

Yargo Gurjão: Deus

Operadores de som:Kiko Silva Sergio Freitas


Músicas:

Quem é o gostosão: Mano Maranhão

É bom para o Moral: Rita Cadilac

Baba baby: Kelly Key

Obs: Triha sonora instrumental usada como BG pertence ao Filme Dácula.

Legião de Cão: As vozes dos políticos são originais e foram extraidas dos programas eleitorais veiculados na televisão e rádio.

O Advogado, o diabo e a bengala encantada (texto original)


Meus amigos e amigas
O caso que eu vou contar
Ocorreu em Fortaleza
Na calçada de um bar:
Fingindo ser meu amigo
O diabo bebeu comigo
E depois não quis pagar.

Eu era advogado
E tinha uma mania
De segunda a quinta-feira
Trabalhava noite e dia
Mas não fazia segredo
Sexta parava mais cedo
E uma cerveja bebia

Assim, numa sexta-feira
Estava anoitecendo
Eu saíra do trabalho
E estava no bar bebendo
Quando um sujeito chegou
Da mesa se aproximou
E foi logo me dizendo:

– Boa noite cidadão,
Posso me sentar aqui?
Pra ouvir sua conversa
E você também me ouvir?
Tomarmos uma cerveja
Comer um pouco que seja
Desse feijão com pequi?

Eu disse: – Não lhe conheço,
Mas tenho educação.
Se quer beber, vá bebendo,
Pode comer do feijão,
Mas antes se identifique
Até pra que eu não fique
Pensando que é ladrão.

O cabra disse: – Pois não,
Eu sou muito conhecido
E embora com você
Eu nunca tenha bebido
Se eu contar minha história
E você tiver memória
Vai ver que não sou bandido.


Faz muito tempo que eu ando
Por esse mundo cruel
Viajando sem destino
Vagando sem rumo, ao léu
Desde que, por uma intriga,
Me meti em uma briga
Logo com o dono do céu.

Foram dizer para ele
Que eu havia falado
Que ao povoar a terra
Ele havia se enganado
Pois num mundo tão bacana
Não podia a raça humana
Por aqui ter se espalhado.

E, de fato, eu tinha dito
Mas sem qualquer intenção
Que ao entregar o planeta
A essa população
Ele condenou a Terra
À violência e à guerra
Não havia salvação.

Uma terra tão bonita
A natureza tão bela
Que Ele desse para mim
E eu viveria nela
Se Ele me criou perfeito
Eu saberia o jeito
De cuidar muito bem dela.

Quando Ele soube o que eu disse
Mandou logo me chamar
Perguntou: “É o que desejas?
É lá que queres morar?
Seja feita a tua vontade
Junto com a humanidade
Haverás de habitar”.

Foi grande a humilhação
Que senti nesse momento
Não havia precisão
De tal achincalhamento
Um anjo tão preparado
Não podia ser tratado
Como um cão rabugento.


Desde então vivo na Terra
Com a determinação
De provar que eu tava certo
Em minha avaliação:
Mostrar que a humanidade
Não detém capacidade
De cuidar desse rincão.

É por isso que se diz
Que eu sou o rei do mal
Mas mal mesmo é o homem
Eu sou um anjo, afinal
Eu só faço incentivar
O homem a se enterrar
No seu próprio lamaçal.

Quando ouvi aquela história
Exclamei: – É o diabo!
Só não sei cadê os chifres
Onde escondeu o rabo!
E ele, muito polido,
Perfumado, bem vestido,
Perguntou: – Quer um quiabo?

– Nem quiabo, nem pequi
Não finja ser meu amigo
Eu tão quieto no meu canto,
O que o diabo quer comigo?
Diga sua intenção
Pois tenho a impressão
Que estou correndo perigo!

O diabo disse: – Ta não!
Eu estou aqui em paz
Só quero um advogado
Inteligente e capaz
Que esclareça meu passado
Pois de tão caluniado
Já não agüento mais.

Por isso ao ver o doutor
Sozinho aqui nesse bar
Pensei: essa é a hora
De com ele conversar
Vou contar meu sofrimento
E ele com muito talento
Vai virar esse placar.

Respondi: – Tu não me enganas
Me elogiando assim
Não venha com essa conversa
Logo pra cima de mim
Não vai ser por vaidade
Que vou chamar de bondade
O que tu faz de ruim.

– O que é isso, doutor,
Não rejeite esse cliente
O senhor vai ser bem pago
Vai enricar de repente
Vai ganhar tanto dinheiro
Que até seu perdigueiro
Vai ter banho de água quente.

Vai ter casa com piscina,
Cinco carros na garagem
Passear no estrangeiro
Todo mês uma viagem
E pra ganhar tudo isso
Quero só seu compromisso
De melhorar minha imagem.

Além de ganhar dinheiro
Inda vai ficar famoso
Todo mundo vai falar:
“Que advogado jeitoso
Fez do diabo um inocente
Querido de toda gente
O doutor é poderoso!”

– Essa história, Seu Diabo,
Eu já conheço de perto
Desde quando tu tentaste
O bom Jesus no deserto
Não me prometa mais nada
A conversa tá encerrada
Vá embora que é o certo!

Mas também não se ofenda
Com a minha reação
Só não peça minha ajuda
Para sua pretensão
Não posso ter competência
Se da sua inocência
Não tenho convicção.

Ele ouviu e não gostou
Ficou calado me olhando
Percebi que a cerveja
Já estava terminando
Pedi a conta e falei:
– Seu diabo, é “mei-a-mei”
Minha parte eu tô pagando!

Ele fez uma careta
E falou: – É engraçado!
Você bebeu quase tudo
E quer o custo rachado
Veja com quem tá mexendo
Pois assim você tá sendo
Por demais desaforado!

– Eu sei com quem to mexendo
E não sou desaforado
Mas se você bebeu pouco
Não sou eu que sou culpado
Se não tem como pagar
Também não vamos brigar
Pode ir, ta perdoado.

Quando eu disso isso pra ele
Despertei o animal.
Batendo a mão na mesa
Com força descomunal
Deu um rugido estridente
E falou por entre os dentes
Com uma voz de metal:

– Não diga que me perdoa
Pois nem Deus me perdoou
Desde aquele triste dia
Que do céu me escorraçou
Tu agora me ofendeu
E pra desespero teu
Um inimigo arranjou.

Eu aqui faço uma pausa
Pra explicar pro leitor
Que se não gosto de briga
Também não sou morredor
Desconheço o que é o medo
Durmo tarde, acordo cedo
Não sinto frio nem dor.

Não mexo com Seu Ninguém
Também não mexam comigo
Cumprimento todo mundo
Todo mundo é meu amigo
Mas quem pensa em me enfrentar
É melhor se preparar
Pra agüentar o castigo.

Assim, quando o capeta
Fez aquela cara feia
Olhei bem pra ele e disse:
– Se vier, meto-lhe a peia!
Dou-lhe na “tauba do queixo”
E depois ainda lhe deixo
Trinta dias na cadeia!

Ele não acreditou
Veio pra cima de mim
Eu saltei meio de banda
E dei-lhe um chute no rim
Ele saiu tropeçando
Nas mesas foi esbarrando
Gritei: – Diabo, hoje é teu fim!

Nessa hora ia passando
Um rapaz pela calçada
O diabo se apoderou
Daquela alma penada
E o rapaz dominado
Por aquele cão danado
Me deu logo uma pedrada.

Pra me defender da pedra
De uma mesa fiz escudo
Depois peguei uma cadeira
E saí quebrando tudo
Ao me ver tão irritado
O diabo assustado
Perdeu a voz, ficou mudo.

Aí eu me aproveitei
Daquela situação
E com muita agilidade
Dei outro chute no cão
E o rapaz da pedrada
Eu derrubei na calçada
E dei-lhe um “mata leão”.

Foi nessa hora que ouvi
O diabo dar um gemido
Percebi que ele tava
Ficando todo doído
Mas eu não sou brincadeira
Com um pedaço de madeira
Acertei-lhe o “pé-do-ouvido”.

Eu bati, ele caiu
Eu pensei: ta terminado.
Mas, que nada, a confusão
Só havia começado
Mal ele caiu no chão
Apareceu tanto cão
Vinha de tudo que é lado.

Vinha cão grande e pequeno
Vinha preto e vinha branco
Uns descendo a ladeira
Outros subindo o barranco
Deles, o mais abusado
Era um baixinho, entroncado,
Só de cueca e tamanco.

Vinha nu, vinha vestido
Vinha pelado e peludo
Tinha cão que era mocho
E cão que era chifrudo
Uns armados de tridente
Outros com espeto quente
Vinham espetando tudo.

Enfrentei aquela corja
E a luta foi sangrenta
Do baixinho de tamanco
Quebrei logo o “pau da venta”
Um gritou: – Pega o sujeito
E mete a faca nos peito
Quero ver se ele agüenta!

Naquela briga danada
Eu apanhava e batia
Às vezes eu atacava
Outras eu me defendia
Mas o que preocupava:
Cada um que eu derrubava
Outro logo aparecia.

Sentindo, então, que não dava
Para enfrentar sozinho
A legião de demônios
Que estava em meu caminho
Resolvi pedir ajuda
Gritei: – Meu Deus, me acuda!
Valei-me aqui meu Padinho!

Nessa hora se ouviu
O estrondo de um trovão
E diante dos meus olhos
Fez-se um grande clarão
No meio de tudo isso
Apareceu Pade Ciço
Me entregando seu bastão.

Com a bengala na mão
Que meu padrinho me deu
Criei mais disposição
Minha coragem cresceu
Saí dando bengalada
E logo a diabarada
Fugiu, desapareceu.

Enquanto eles corriam
Eu fiquei parado, vendo
O rapaz que eu derrubei
Foi então se reerguendo
E me dizendo: – Sei moço,
To com uma dor no pescoço
O que está acontecendo?

Eu disse: – Fique tranqüilo
Que o pior já passou
Estava havendo uma briga
Mas agora terminou
Aí toquei o bastão
Na nuca do cidadão
E a dor dele sarou.

Quanto às mesas e cadeiras
Que eu havia quebrado
Calculei o prejuízo
E deixei tudo acertado
Quando paguei a quantia
O dono do bar tremia
Tava um mau cheiro danado.

E fui para minha casa
Sem querer mais pensar nisso
Tentando esquecer um pouco
Todo aquele rebuliço
Mas carregando contente
Em minhas mãos o presente
Que ganhei do Padre Ciço.

Foi assim, caros amigos
Como tudo aconteceu
No dia que o diabo
Me enfrentou e perdeu
Nada disso eu inventei
Simplesmente lhes contei
Da maneira que ocorreu.

Infelizmente o que conto
Já não posso mais provar
Pois pra alargar a rua
Onde funcionava o bar
Demoliram o recinto
E o dono, Seu Zé Felinto,
Não sei onde foi morar.

O rapaz que me atacou
Me jogando uma pedrada
Eu não sei de quem se trata
Desconheço sua morada
Mas será que ajudaria,
Se naquele mesmo dia,
Não se lembrava de nada?

O leitor perguntaria:
– Por que não mostra o cajado?
Que o Padre Ciço lhe deu
Lhe fazendo abençoado?
Presente tão valioso
Que lhe fez tão poderoso
Você deve ter guardado.

Por muito tempo guardei
Como quem guarda dinheiro
Mas no dia em que cheguei
Pra morar no Juazeiro
Ouvi uma voz dizer:
– Já pode me devolver
Pro meu dono verdadeiro.

Ouvindo a voz entendi
Que a hora era chegada
De devolver para o Santo
A bengala encantada
E entre exvotos de madeira
Escondi a companheira
Que no museu foi deixada.

Pro isso do que eu conto
Não faço comprovação
Se o leitor não acredita
E quer ter confirmação
O mundo ta tão moderno
Telefone pro inferno
E vá perguntar pro cão!

Para mim o importante
É ter comigo a certeza
Que amando nosso irmão
Preservando a natureza
Deus está do nosso lado
Pode ficar descansado
Vencer o diabo é moleza.



quarta-feira, 29 de agosto de 2007

O cordelista imortal de Mossoró




A POESIA DE ANTONIO FRANCISCO
Em qualquer lista que reúna os grandes nomes da Literatura de Cordel, especialmente os que estão em atividade, não pode faltar o de Antônio Francisco. Mossoroense, Antonio Francisdo, nasceu a 21 de outubro de 1949, num bairro chamado Lagoa do Mato. É poeta popular, xilógrafo, compositor e ainda trabalha confeccionando placas. Um dado interessante é que, só após os quarenta anos, ele se dedicou ao ato de escrever. No dia 15 de maio de 2006 tomou posse na Academia Brasileira de Literatura e Cordel - ABLC, na cadeira de número 15, patronímica do poeta cearense Patativa do Assaré. É autor dos poemas, “Meu Sonho”, “O Guarda-Chuva de Prata”, “Os Sete Constituintes” ou “Os Animais têm Razão”, “Aquela Dose de Amor”, “A Oitava Maravilha” ou a “Lenda de Cafuné”, “A Cidade dos Cegos” ou “História de Pescador”, “As Seis Moedas de Ouro”, “A Arca de Noé”, “Do Outro Lado do Véu”, “Confusão no Cemitério”, “O Ataque de Mossoró ao Bando de Lampião”, “A Lenda da Ilha Amarela”, “Um Conto bem Contado”, “A Casa que a Fome Mora”, “Um Bairro Chamado Lagoa do Mato”, “O Duelo de Bangala”, “O Feiticeiro do Sal”, “Uma Carrada de Gente”, “No Topo da Vaidade”, “Uma Carta para a Alma de Pero Vaz de Caminha”, “Uma Esmola de Sombra”, “O Rio de Mossoró e as Lágrimas que eu Derramei”, “O Lado Bom da Preguiça”, “A Resposta” e “De Calça Curta e Chinela”, editadas em folhetos ou em seus livros “Dez Cordéis num Cordel Só”, “Por Motivo de Versos” e “Veredas de Sombras”, editados pela Queima Bucha.
Destaco, a seguir, a obra:

OS SETE CONSTITUINTES


Quem já passou no sertão
E viu o solo rachado,
A caatinga cor de cinza,
Duvido não ter parado
Pra ficar olhando o verde
Do juazeiro copado.

E sair dali pensando:
Como pode a natureza
Num clima tão quente e seco,
Numa terra indefesa
Com tanta adversidade
Criar tamanha beleza.

O juazeiro, seu moço,
É pra nós a resistência,
A força, a garra e a saga,
O grito de independência
Do sertanejo que luta
Na frente da emergência.

Nos seus galhos se agasalham
Do periquito ao cancão.
É hotel do retirante
Que anda de pé no chão,
O general da caatinga
E o vigia do sertão.

E foi debaixo de um deles
Que eu vi um porco falando,
Um cachorro e uma cobra
E um burro reclamando,
Um rato e um morcego
E uma vaca escutando.

Isso já faz tanto tempo
Que eu nem me lembro mais
Se foi pra lá de Fortim,
Se foi pra cá de Cristais,
Eu só me lembro direito
Do que disse os animais.

Eu vinha de Canindé
Com sono e muito cansado,
Quando vi perto da estrada
Um juazeiro copado.
Subi, armei minha rede
E fiquei ali deitado.

Como a noite estava linda,
Procurei ver o cruzeiro,
Mas, cansado como estava,
Peguei no sono ligeiro.
Só acordei com uns gritos
Debaixo do juazeiro.

Quando eu olhei para baixo
Eu vi um porco falando,
Um cachorro e uma cobra
E um burro reclamando,
Um rato e um morcego
E uma vaca escutando.

O porco dizia assim:
– “Pelas barbas do capeta!
Se nós ficarmos parados
A coisa vai ficar preta...
Do jeito que o homem vai,
Vai acabar o planeta.

Já sujaram os sete mares
Do Atlântico ao mar Egeu,
As florestas estão capengas,
Os rios da cor de breu
E ainda por cima dizem
Que o seboso sou eu.

Os bichos bateram palmas,
O porco deu com a mão,
O rato se levantou
E disse: – “Prestem atenção,
Eu também já não suporto
Ser chamado de ladrão.

O homem, sim, mente e rouba,
Vende a honra, compra o nome.
Nós só pegamos a sobra
Daquilo que ele come
E somente o necessário
Pra saciar nossa fome.”

Palmas, gritos e assovios
Ecoaram na floresta,
A vaca se levantou
E disse franzindo a testa:
– “Eu convivo com o homem,
Mas sei que ele não presta.

É um mal-agradecido,
Orgulhoso, inconsciente.
É doido e se faz de cego,
Não sente o que a gente sente,
E quando nasce e tomando
A pulso o leite da gente.

Entre aplausos e gritos,
A cobra se levantou,
Ficou na ponta do rabo
E disse: – “Também eu sou
Perseguida pelo homem
Pra todo canto que vou.

Pra vocês o homem é ruim,
Mas pra nós ele é cruel.
Mata a cobra, tira o couro,
Come a carne, estoura o fel,
Descarrega todo o ódio
Em cima da cascavel.

É certo, eu tenho veneno,
Mas nunca fiz um canhão.
E entre mim e o homem,
Há uma contradição
O meu veneno é na presa,
O dele no coração.

Entre os venenos do homem,
O meu se perde na sobra...
Numa guerra o homem mata
Centenas numa manobra,
Inda tem cego que diz:
Eu tenho medo de cobra.”

A cobra inda quis falar,
Mas, de repente, um esturro.
É que o rato, pulando,
Pisou no rabo do burro
E o burro partiu pra cima
Do rato pra dar-lhe um murro.

Mas, o morcego notando
Que ia acabar a paz,
Pulou na frente do burro
E disse: – “Calma, rapaz!...
Baixe a guarda, abra o casco,
Não faça o que o homem faz.”

O burro pediu desculpas
E disse: – “Muito obrigado,
Me perdoe se fui grosseiro,
É que eu ando estressado
De tanto apanhar do homem
Sem nunca ter revidado.”

O rato disse: – “Seu burro,
Você sofre porque quer.
Tem força por quatro homens,
Da carroça é o chofer...
Sabe dar coice e morder,
Só apanha se quiser.”

O burro disse: – “Eu sei
Que sou melhor do que ele.
Mas se eu morder o homem
Ou se eu der um coice nele
É mesmo que estar trocando
O meu juízo no dele.

Os bichos todos gritaram:
– “Burro, burro... muito bem!”
O burro disse: – “Obrigado,
Mas aqui ainda tem
O cachorro e o morcego
Que querem falar também.”

O cachorro disse: – “Amigos,
Todos vocês têm razão...
O homem é um quase nada
Rodando na contramão,
Um quebra-cabeça humano
Sem prumo e sem direção.

Eu nunca vou entender
Por que o homem é assim:
Se odeiam, fazem guerra
E tudo o quanto é ruim
E a vacina da raiva
Em vez deles, dão em mim.”

Os bichos bateram palmas
E gritaram: – “Vá em frente.”
Mas o cachorro parou,
Disse: – “Obrigado, gente,
Mas falta ainda o morcego
Dizer o que ele sente.”

O morcego abriu as asas,
Deu uma grande risada
E disse: – “Eu sou o único
Que não posso dizer nada
Porque o homem pra nós
Tem sido até camarada.

Constrói castelos enormes
Com torre, sino e altar,
Põe cerâmica e azulejos
E dão pra gente morar
E deixam milhares deles
Nas ruas, sem ter um lar.”

O morcego bateu asas,
Se perdeu na escuridão,
O rato pediu a vez,
Mas não ouvi nada, não.
Peguei no sono e perdi
O fim da reunião.

Quando o dia amanheceu,
Eu desci do meu poleiro.
Procurei os animais,
Não vi mais nem o roteiro,
Vi somente umas pegadas
Debaixo do juazeiro.

Eu disse olhando as pegadas:
Se essa reunião
Tivesse sido por nós,
Estava coberto o chão
De piubas de cigarros,
Guardanapo e papelão.

Botei a maca nas costas
E saí cortando o vento.
Tirei a viagem toda
Sem tirar do pensamento
Os sete bichos zombando
Do nosso comportamento.

Hoje, quando vejo na rua
Um rato morto no chão,
Um burro mulo piado,
Um homem com um facão
Agredindo a natureza,
Eu tenho plena certeza:
Os bichos tinham razão.

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Versatilidade do cordel


CORDEL MATEMÁTICO E SAUDAÇÃO A ESTUDIOSOS DO DIREITO
Uma das coisas que mais chama a atenção na literatura de cordel é a sua capacidade de se adequar a todas as situações que aparecem. Serve para contar histórias, transmitir preceitos éticos, protestar contra a má atuação dos políticos. Serve até para ensinar matemática, como mostram os versos de RAIMUNDO ADRIANO, colhidos por ARIEVALDO VIANA no livro "Acorda Cordel na Sala de Aula":


Os anos de existência

Que essa garotinha fez

Podem ser cinco mais dois

Três mais quatro, um mais três

A metade de quatorze

Ou então dez menos três.


Este ano, por exemplo, fui convidado pelos meus amigos LEONARDO CARVALHO e SABINO HENRIQUE, organizadores do DIREITO 2007, um dos maiores eventos jurídicos do país, para fazer um pequeno recital, que aconteceria entre um painel jurídico e outro.

Percebendo a peculiaridade daquele momento, quando tantos estudiosos do Direito abriam espaço para a poesia popular, fiz a saudação inicial assim:


Boa noite a senhoras e senhores,
Como é grande a minha satisfação
De encontrar-me aqui, nesta ocasião,
Entre mestres, estudantes e doutores.
Grandes nomes, por demais conhecedores
Da Ciência do Direito que nos guia.
Não pensei, eu lhes confesso, que algum dia
Eu viesse, ante platéia tão seleta,
Exercer o meu ofício de poeta
Misturando o Direito e a poesia.

É por isso que aceitei com alegria
O convite tão gentil que me foi feito
Para entre estudiosos do Direito,
E profissionais da advocacia,
Vir mostrar que a lei não é letra fria,
Que é preciso em cada interpretação,
Por um pouco de amor e de emoção.
Que é usando nossa sensibilidade
Que aos poucos vamos, na realidade,
Construindo o direito da nação.

Neste encontro cuja coordenação
Foi entregue a Leonardo Carvalho
Meu amigo, eu conheço seu trabalho,
E também a sua organização.
Sei que é grande a sua preocupação
Em fazer com que em todo o evento
Tudo esteja acontecendo a contento
Para todos, bacharéis e estudantes
Convidados, assistentes, palestrantes
Estou certo, vai ser tudo cem por cento.

Eu percebo, olhando este documento
Que são muitas aqui as autoridades
Poderia até dizer celebridades
Que vieram pra este acontecimento.
Sendo assim, pra não haver constrangimento
Não vou mais dizer o nome de ninguém
Pode ser que eu esqueça de alguém
E esse alguém se aborreça assim comigo
Leonardo, em seu nome, meu amigo,
Eu saúdo a todos que aqui vêm.

terça-feira, 21 de agosto de 2007

CIDADANIA CEARENSE DE ARIANO SUASSUNA

Foto: Marcos Campos, publicada no Jornal O POVO, de 18.08.2007.
SUASSUNA E O MOTE “SEU JOVENTINO É LADRÃO”

Na semana passada, dia 17 de agosto de 2007, o escritor Ariano Suassuna recebeu o título de Cidadão Cearense. Uma honra para o povo cearense ter um escritor dessa categoria entre seus cidadãos. Uma alegria para os escritores do Ceará tê-lo como conterrâneo.
Certa vez, eu estava assistindo TV, mudando de canal em busca de alguma programação interessante, quando me deparei com Ariano Suassuna, em uma palestra proferida em Fortaleza. Fiquei impressionado com o conhecimento e a capacidade de transmitir esse conhecimento, com alma, com emoção.
Mas o que mais me chamou a atenção foi a declamação de duas poesias, uma bem curta, uma glosa, e a outra, a “Cantiga do Vilela”, que narra as valentias de um homem chamado Vilela, que desafiava a polícia no sertão nordestino.

Deixemos a Cantiga do Vilela para o próximo post.
Falemos agora da glosa, a qual, segundo narrou Suassuna, ocorreu em uma fazenda, no interior de um Estado do Nordeste, onde se apresentava um cantador. Todos sabem que, para um glosador, a maior vergonha que existe é receber um mote e não glosar. Não fazer a poesia correspondente. E estava lá o cantador se exibindo, quando chegou Seu Joventino, bêbado, com um revólver na cinta, e sentou na primeira fila. Aí, um desses “inimigos da humanidade”, como bem disse Suassuna, que estava sentado lá na última fila, gritou:

“Seu Joventino é ladrão!”.

O cantador ficou pálido. Fazer a glosa daquele mote era morte certa, pois o Seu Joventino, ali, na primeira fila, não deixaria barata uma ofensa. Mas o cantador começou o seu verso, “comendo pelas beiradas”, e deu no seguinte:

Assim, só se eu não glosar
Embora seja um defeito,
Mas não tendo outro jeito
Pode alguém se melindrar.
Agora vou me arriscar
A ofender um cidadão
Que com tanta educação
Podia ser meu amigo
Você diz, mas eu não digo:
SEU JOVENTINO É LADRÃO!

domingo, 19 de agosto de 2007

O SAPO, PARA RECITAIS


Esta é uma versão resumida do cordel do sapo e do saco. É uma versão para recitais, pois a original ficaria muito longa para ser cantada, mas a essência da história está aí...


UM SAPO DENTRO DE UM SACO

Andando por esse mundo
Já vi muito bicho feio.
Por isso, dificilmente
Me espanto ou me aperreio.
Mas tive um certo receio
Ao encontrar, num buraco,
Um sapo dentro de um saco;
Um saco com um sapo dentro;
O sapo fazendo papo
E o papo fazendo vento.

Era uma noite escura,
Eu voltava para casa,
Quando ouvi alguma coisa,
Como um batido de asa,
Como água apagando brasa,
Como a queda de um barraco.
E era um sapo dentr’um saco;
Um saco com um sapo dentro;
O sapo fazendo papo
E o papo fazendo vento.

Apurei o meu ouvido
Pra saber de onde partia
Aquele barulho estranho,
Aquela meia-agonia.
Medo mesmo eu não sentia,
Mas fui ficando velhaco.
Com o sapo dentr’o saco;
E o saco com o sapo dentro;
O sapo fazendo papo
E o papo fazendo vento.

Então, fui me aproximando
No meio da escuridão.
Como eu não via nada,
Fui assim, passando a mão.
Procurando pelo chão,
Como quem cata cavaco,
O sapo dentro do saco;
O saco com o sapo dentro;
O sapo fazendo papo
E o papo fazendo vento.

Enquanto eu tateava,
Continuava o barulho.
Foi aí que, bem do lado
De um monte de entulho,
Tropecei num pedregulho
E caí feito um pau fraco,
Perto do sapo no saco;
Do saco com o sapo dentro;
Do sapo fazendo papo
E do papo fazendo vento.
Quando caí, o meu braço
Entrou numa cavidade
Onde alguém, um pouco antes,
Fez suas necessidades.
Naquela velocidade,
Atolei até o sovaco.
E o sapo dentro do saco;
E o saco com o sapo dentro;
O sapo fazendo papo
E o papo fazendo vento.

Quando eu quis me levantar,
Minha surpresa foi tamanha
Que fui caindo de novo,
Como uma lata de banha.
Pulou uma coisa estranha
Para fora do buraco.
Era o sapo dentr’o saco;
O saco com o sapo dentro;
O sapo fazendo papo
E o papo fazendo vento.

Assustado com a coisa
Que se sacudia inteira,
Que fazia mais zoada
Do que vendedor na feira,
Bati a mão na peixeira,
Joguei de lado o casaco,
Meti a faca no saco,
No saco com o sapo dentro;
O sapo fazendo papo
E o papo fazendo vento.

Dei mais de vinte facadas,
Não acertei uma só.
Mesmo eu sendo acostumado
A “rejetar” mocotó.
É difícil até mocó
Escapar quando eu ataco.
Mas o sapo dentr’o saco,
E o saco com o sapo dentro,
Pulava e dava sopapo
Com o papo fazendo vento.

Fui embora cabisbaixo,
E aprendi a lição,
De não sair chafurdando
No meio da escuridão.
Não fujo de assombração,
Mas nunca mais me atraco
Com um sapo dentr’um saco;
Um saco com um sapo dentro;
O sapo fazendo papo
E o papo fazendo vento.




(Do livro "Uma sentença, uma aventura e uma vergonha", de Marcos Mairton da Silva)

terça-feira, 14 de agosto de 2007

PETIÇÃO EM VERSOS


PEDIDO DE LIBERDADE PROVISÓRIA

Recebi esta de meu amigo Marconi Araújo, da Justiça Federal da Paraíba.

206.2007.000523-2
Descriao Estatuto do Desarmamento - lei 10826/03
Vara 1ª Vara da Comarca de Bezerros
Juiz Paulo Alves de Lima
Data 21/06/2007 12:24
Fase Devolução de Conclusão

Autos nº 206.2007.000523-2.
Pedido de Liberdade Provisória.
Parecer do Min. Público (fls. 19/21).
Autuado: JOSÉ SANDRO VENCESLAU DA SILVA.
Vistos, etc...

José Sandro V. da Silva,
Através do advogado
Doutor Nivaldo Santino,
Pediu pra ser liberado,
Dizendo que sua prisão
Decorreu de autuação
Porque estava armado.

Mas afirma que a arma
Era um mero bacamarte,
Usado pra comemorar
Uma festa que faz parte
Do folclore da cidade,
que se usa, sem maldade,
na terra do PAPANGUARTE.

A petição está em verso,
Narrando o acontecido,
A tristeza do requerente,
De se achar recolhido,
Sem entender a razão,
Por se dizer um cidadão
E não ser nenhum bandido.

E para não trair os fatos
E registrá-los fielmente,
Peço vênia ao defensor
Do acusado/defendente,
Para transcrever a peça,
Que está, assim, expressa
EM POESIA DE REPENTE:

"Doutor Juiz, peço vênia
E vossa COMPREENSÃO,
Pela forma INUSITADA
Dessa humilde petição.
Mas também inusitado,
Por todos considerado,
Foi a razão dessa prisão".

"Seu Juiz, o requerente,
Bom nordestino - que é -,
Homenageava o Santo,
Como a sua crença quer,
Usando seu bacamarte,
Que, do folclore, faz parte,
Praticando a sua fé".

"Trazido, pela Polícia,
Sem entender a razão,
O requente foi preso,
Pois, sem autorização,
Foi, em flagrante autuado,
Mas, porém, tá desolado
Com esta situação"

"Foi no dia dezesseis (16)
De junho, mês de fogueira,
Que o requerente foi preso,
Fazendo tal brincadeira,
Tendo o Doutor Delegado,
De Pronto, lhe AUTUADO,
Conforme a lei brasileira".

"O BACAMARTE é guardado
E DO SEU LUGAR SÓ SAI
Neste exato MÊS de junho,
Quando o momento se apraz;
É usado por BRINCANTES,
Como fizeram os VOLTANTES
Da guerra do Paraguay".

"Um TIRO de bacamarte,
seu Juiz, Chama atenção.
Mas NÃO É atrevimento,
Tampouco PERTURBAÇÃO;
É COSTUME e via eleita
Pra agradecer a colheita
E ACORDAR São João".

"O bacamarte, doutor,
BRINQUEDO, ... É;
ARMA..., NÃO!
Se usa todos os anos,
Nas FESTAS de São João,
Pra HOMENAGEAR o santo
E MANTER A TRADIÇÃO".

"Existe, em nossa cidade,
E também na REGIÃO,
Grupos de BACAMARTEIROS,
Que têm bela FORMAÇÃO;
Acolhem MULHER e HOMEM,
De BATALHÃO tem o nome,
Mas têm AUTORIZAÇÃO".

"A Lei do desarmamento
A TRADIÇÃO contraria:
A arma não tem registro;
Por isso, TAL AGONIA,
O requerente tá preso,
Mas é justo o seu desejo,
De ser solto neste dia".

"Liberdade Provisória,
O PEDIDO está feito
Dentro da LEGALIDADE
Da justiça e do DIREITO,
Já que o réu é PRIMÁRIO,
TRABALHADOR com salário
E é CIDADÃO perfeito".

"Requer, com ou sem fiança,
Já que, agora, a lei permite;
PROMETE COMPARECER
Aos ATOS que a lei insiste,
A todas as AUDIÊNCIAS.
Só não se for por DOENÇA.
Mesmo assim, que justifique".

"Tá na CONSTITUIÇÃO
Ao cidadão GARANTIDO,
Lá no seu artigo quinto (5º),
Escrito em seus incisos,
Que ninguém será levado,
Sem ainda ser culpado,
À prisão e lá MANTIDO...".

"LIBERDADE provisória
É REGRA; Não, exceção.
Sendo do preso o DIREITO
DE entrar com PETIÇÃO,
Pedindo o seu livramento,
Provando com documentos
Que é um bom CIDADÃO".

"Roga-se ao douto julgador
a PROCEDÊNCIA do pedido,
Dado ao periculum in mora,
Conforme tá entendido,
Com vistas ao MP,
Para que dê PARECER
E seja o RITO cumprido".

"O pedido tem AMPARO
Na CARTA Constitucional
E também é APOIADO
No Código Processual.
Neste, sem nenhum revés,
É o TREZENTOS E DEZ
O ARTIGO PRINCIPAL".

"Ta no Parágrafo Único
Do ARTIGO em questão
O DIREITO ao benefício
DA SUA LIBERAÇÃO,
Pois o pleito é ALTIVO
E não existe MOTIVO
Que autorize a prisão".

"Se for FIANÇA, se ampara
Num BENEFÍCIO COMUM.
Aí, o artigo em voga,
é 321 (trezentos e vinte e um),
Sendo DIREITO LATENTE
Que faz jus o requerente
A favorável DESISUM".

"Por HIPOSSUFICIÊNCIA,
Faz um apelo ao Doutor,
SE ARBITRADA A FIANÇA,
Conforme requisitou,
Por necessidade pura
Pra não ficar na penúria,
Seja MÓDICO O VALOR".

"O requerente FAZ JUS
AO PEDIDO IMPETRADO,
Pois de BONS antecedentes,
PRIMÁRIO e bem SITUADO,
Tendo também bom conceito,
Sendo sujeito DIREITO,
Por todos CONSIDERADO".

"Por todo o aqui exposto
E tendo, acima de tudo,
Fumaça do bom direito,
O CPP como ESCUDO,
Espera-se ter atingido
A clareza do pedido,
Toda forma e conteúdo".

"Pra botar ponto final
No justo REQUERIMENTO,
Também atender a forma
Como exige o REGIMENTO,
NESTES TERMOS,
PEDE E ESPERA,
Aguarda o DEFERIMENTO".

"Hoje é 18 DE JUNHO,
No calendário cristão.
A cidade é BEZERROS
E, conforme procuração,
Totalmente respaldado,
NIVALDO, o advogado,
ASSINA A PETIÇÃO".

Foi esse o PEDIDO feito,
Em nome do AUTUADO,
E que resolvo CONCEDER,
porque está fundamentado,
de acordo com o PARECER,
que julgo por bem ACOLHER,
pra LIBERTAR O ACUSADO.

Ordeno que seja expedido
O ALVARÁ DE SOLTURA
Em favor do AUTUADO,
Que diz ser da agricultura
Na cidade de J. BORGES,
A maior das grandes vozes
Na arte da XILOGRAVURA.

Faça constar no ALVARÁ
O DEVER do AUTUADO
De VIR A ESTE JUÍZO,
Para ser COMPROMISSADO.
Na forma da LEI em vigor
E dê ciência ao PROMOTOR
E ao DEFENSOR do acusado.

PUBLICADO aos 21 DE JUNHO
DO ANO andante ou fluente
(ou seja, em DOIS MIL E SETE)
NO CARTÓRIO competente,
Este despacho PROLATADO
________________________
por Paulo Lima - o magistrado,
UM AMANTE DO REPENTE.

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

CORDEL URBANO


UMA VISITA INESPERADA

Sou um poeta urbano
Nascido na capital
Cresci na cidade grande
Me criei no litoral
E isso me trouxe um problema
Na verdade um dilema
Que custei a resolver:
Sempre quis fazer cordel
Mas diante do papel
Não sabia o que escrever.

Pois os grandes cordelistas
Dentre os quais eu conhecia
Adotavam como tema
Para sua poesia
As coisas lá do sertão
Cangalha, sela, gibão,
A vida do sertanejo,
Todas coisas que, em verdade,
Morando aqui na cidade
Eu não encontro nem vejo.

Sendo assim, pensava eu,
Como é que eu vou fazer
Poesia de cordel
Sem sequer eu conhecer
Uma casa de farinha
O ninho d’uma rolinha
Uma jumenta amojada
Uma cabaça, uma tramela,
Água de pote, gamela,
Uma galinha deitada?

Eu sei que o cordel existe
Desde as antiguidades
Divulgando as notícias
Espalhando novidades
Num tempo em que não havia
Como existe hoje em dia
Rádio nem televisão
E os poetas se inspiravam
Com tudo que encontravam
Na cidade ou no sertão.

Mas aqui neste Brasil
É um fato inconteste
Que o cordel cresceu mesmo
Foi na Região Nordeste.
Falando de cangaceiros,
Cantadores, boiadeiros,
Sua vida e sua luta,
Os folhetos no cordão
São a melhor expressão
Da poesia matuta.


Patativa já dizia,
Com muita propriedade,
Pra não cantar o sertão
O poeta da cidade.
E falava abertamente,
Do seu jeito eloqüente:
“Vosmicê, da capitá,
Pode cantá, seu dotô,
Mas faça a mim um favô,
Cante lá que eu canto cá”.

Por isso, o homem letrado,
Que aos poucos passei a ser,
Ficava meio acanhado
Quando queria escrever
A poesia simplória
Que tão bem conta a história
Desse povo nordestino,
Pois estava habituado
Ao falar sofisticado
Que aprendi desde menino.

Mas um dia aconteceu
Um fato surpreendente
Que fez toda essa história
Ter um rumo diferente.
Despertando a poesia
Que eu comigo trazia
Mas estava adormecida,
Ou talvez aprisionada,
E, uma vez libertada,
Mudaria minha vida.

Era uma noite de chuva
E eu me deitei para ler
Mas foi só pegar no livro
Para logo adormecer.
Dormia profundamente
Quando uma voz insistente
Pelo meu nome chamava
E foi tanta a insistência
Que mesmo com resistência
Aos poucos eu acordava.

Então pensei: – Quem será?
Quem é que está me chamando?
Que não respeita meu sono
Quando eu estou descansando?
O que há de tão urgente
Que não pode esse vivente
Esperar eu acordar?
Haverá necessidade
De a minha tranqüilidade
Alguém vir atrapalhar?

E fui abrindo meus olhos
Assim, meio chateado,
E me sentando na rede
Onde eu estava deitado,
Quando vi ali presente
Uma multidão de gente
Que estava ali comigo
Gente que eu não conhecia
Mas todo mundo sorria
Como se fosse amigo.

Eu não entendi aquilo
Fiquei até assustado
Mas tentei me acalmar
E não ser mal educado.
Então fui me levantando
A todos cumprimentando
Acenando com a mão
Esperando que alguém
Cumprimentasse também
E me desse explicação.

Afinal, naquela noite,
Por ninguém eu esperava.
Nem parente, nem amigo.
Nem mulher eu aguardava.
Imagine então pessoas
Que até pareciam boas
Mas que eu não conhecia
Chegando assim, de repente,
Surgindo na minha frente
Naquela hora tardia.

Mas antes que eu perguntasse
O que estava acontecendo
Um senhor de meia-idade
Já foi logo me dizendo:
– Fique tranqüilo, rapaz,
Nossa visita é de paz,
Viemos só lhe dizer
Da emoção e alegria
Que a muitos você daria
Começando a escrever!

Tem tanta história boa
Que você tem pra contar,
Tanto caso interessante
Pra você compartilhar.
Não é justo esconder
O quanto tem a dizer
É melhor começar, já!
Não seja tão egoísta
Você sabe que o artista
Vai aonde o povo está!

Perguntei: – Quem é você?
Sobre o que está falando?
E quem são essas pessoas
Que estão lhe acompanhando?
É alguma brincadeira
Que assim, dessa maneira,
Vocês chegaram fazendo?
É melhor esclarecer
Pra que eu possa entender
O que está acontecendo.

Enquanto eu perguntava
O homem sorriu pra mim
E me disse: – Nos desculpe,
Não se aborreça assim!
Não foi para lhe irritar
Nem tampouco pra brincar
Que até aqui nós viemos.
Queremos ver libertado
O poeta aprisionado
Que até hoje conhecemos!

Pois nós aqui já vivemos,
Como poetas também
Até que fomos chamados
Para cantar no além.
Mas lá ficamos sabendo
Do que estava acontecendo,
Da sua dificuldade,
Para fazer poesia
Achando que só sabia
Cantar coisas da cidade.

Meu amigo, deixe disso!
Por que a preocupação?
A fonte da poesia
Brota é do seu coração!
No sertão ou na cidade
Sua sensibilidade
Responde do mesmo jeito.
E pra sua poesia
Seja a noite, seja o dia
Tudo faz o mesmo efeito!

Cante as coisas da cidade!
Cante as coisas do sertão!
O amor pela mulher,
O amor pelo irmão
O prazer, o sofrimento,
A alegria, o lamento,
Cante tudo o que encontrar
Pois tudo o que se aproxima
É uma fonte de rima
Para quem sabe rimar!

É essa a grande mensagem
Que viemos lhe trazer
E não esqueça os amigos
Que acaba de conhecer:
Expedito Sebastião,
Que de Cícero Romão
Foi um grande defensor,
João Ferreira, com estilo,
Das “Proezas de João Grilo”
Foi o verdadeiro autor.

Estão também Apolônio,
Zé Camelo e Aderaldo,
Que eu nem preciso dizer
Da sua fama e respaldo.
João Melchíades, o famoso,
Do “Pavão Mysteriozo”,
E, dentre esses grandes nomes,
Este, que lhe fala agora,
Mas já precisa ir embora,
Seu servo, Leandro Gomes.

Enquanto ele falava
Eu chorava emocionado
Agradecendo a Deus
Por ser tão abençoado.
E eles, sempre sorrindo,
Aos poucos foram saindo,
Me deixando ali sozinho
E foi desde aquele dia
Que a minha poesia
Tomou um outro caminho.

Hoje, quando eu me lembro
De todo aquele ocorrido
Fico até me perguntando
Terá mesmo acontecido?
Ou será que foi um sonho
Aquele povo risonho
Ter ido me visitar?
Eu na verdade não sei
Mas o fato é que passei
A qualquer coisa cantar.

Os barulhos da cidade,
Fumaça, poluição,
Menino pedindo esmola
Polícia atrás de ladrão
Buzina, medo de assalto,
Mulher de sapato alto,
Gente apressada correndo.
Tudo vira poesia
Desde quando nasce o dia
Nos versos que vou fazendo.

Se estou dentro de casa
Tem o ar-condicionado
O forno de micro-ondas
Um computador ligado.
Lá fora é academia
Shopping-center, gritaria,
Um prédio em construção
É bombeiro, é ambulância
E lá se vai a infância
No meio da agitação.


Para fazer os meus versos
Não falta matéria prima
Um elevador que desce
Um outro que vai pra cima
Uma van que vai parando
E nela alguém vai chegando
Atrasado pro trabalho.
Numa mesa improvisada,
Alguém vende, na calçada,
Caneta, isqueiro e baralho.

É assim que vou cantando
As coisas da capital.
Canto os engarrafamentos
Os artistas do sinal.
Até na universidade
E em muita solenidade
Acabei achando um jeito,
De apresentar bem rimado
O tema que era estudado
Na Ciência do Direito.

Já fiz verso até julgando
Um caso mesmo real.
Depois contei a história
Da Justiça Federal.
Cheguei também a narrar
Uma briga em um bar
Quando enfrentei o cão
E uma bengala encantada
Que me foi presenteada
Me tirou da aflição.

Foi assim, caros amigos,
Como tudo começou
Quando de uma vez por todas
A poesia passou
A ser minha companheira.
E pela vida inteira
Há de me acompanhar
E assim eu vou cantando
Divertindo e alegrando
Quem quiser me escutar.


(Autor: Marcos Mairton da Silva)

(Do Livro "Uma sentença, uma aventura e uma vergonha; e outras poesias de cordel").

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