quinta-feira, 16 de junho de 2011

Cordel no Carnaval Carioca


DEPOIS DA TV, CORDEL GANHA
MARQUÊS DE SAPUCAÍ


Dizem que no Brasil, tudo acaba em samba... Acabava! Agora acaba tudo em cordel. 90% dos encartes de lojas que circularam agora em junho aqui em Fortaleza usaram a gravura popular (de capas de folhetos) como principal ilustração. Até anuncios da TV seguiram a mesma trilha. É sempre bom ver a cultura nordestina em destaque, sendo reconhecida em outros recantos do país.

Depois que a Rede Globo lançou a novela Cordel Encantado é a vez de uma grande escola de samba do Rio de Janeiro (a Acadêmicos do Salgueiro) aproveitar o tema para o desfile de 2012. No entanto, essa badalação enorme que se criou em torno da Literatura de Cordel às vezes me anima e às vezes me preocupa. Para quem lê cordel desde a infância e conhece essa arte como a palma da mão, tais manifestações às vezes soam falsas e meio pasteurizadas. A intenção pode ser boa, mas o cordel com a sinopse do tema, que irá inspirar os compositores para composição do samba enredo da Acadêmicos do Salgueiro  mistura, equivocadamente, o linguagajar matuto (que não é utilizado pelo verdadeiro cordelista) com métrica claudicante e rimas duvidosas. É uma simbiose de Patativa do Assaré com o samba do crioulo doido. Passa é longe da arte de José Camelo de Melo, Leandro Gomes de Barros e José Pacheco da Rocha. Quantas vezes vou ter ainda que repertir que CORDEL é uma coisa e POESIA MATUTA é outra?

Sinceramente,  versos como "um cadim de inspiração" doem no ouvido. E TROVA rimando com EUROPA é de fazer o velho Manoel D'Almeida Filho se remexer na tumba! Outra coisa, ví xilogravuras de J. Borges, Costa Leite, Dila e outros artistas compondo o cenário (que por sinal está belíssimo)... Será que esses artistas populares nordestinos receberam alguma coisa de direito autoral? Afinal de contas, o carnaval carioca é um negócio altamente lucrativo, que movimenta cifras astronômicas. Não custa nada deixar uma moedinha cair na cuia do ceguinho cantador de feira, não é mesmo?

Os mais otimistas dizem que o cordel está ganhando projeção nacional, que será absorvido e digerido avidamente por todas as camadas sociais e por gente dos mais distantes rincões desse país continental. Os tradicionalistas vêm esse oba-oba com desconfiança, uma vez que o que vem sendo apresentado até aqui não passa de uma caricatura da poesia popular, com foco mais centrado na xilogravura. Fala-se muito que o cordel está em evidência graças à novela e outras manifestações afins, mas na prática, no frigir dos ovos, o que isto vem trazendo de positivo para o poeta popular? Que custo era contratar especialistas no assunto para uma consultoria?

Eu, particularmente, não quero cometer o pecado julgar por antecipação o espetáculo que a Acadêmicos do Salgueiro prepara para o carnaval de 2012. Até porque, a ABLC (Academia Brasileira de Literatura de Cordel), instituição da qual faço parte, será homenageada pela referida Escola de Samba... De repente, pode vir coisa boa por aí, mas pelo sim, pelo não, estou com as barbas de molho.

Vejam, a seguir, matéria extraida do blog "Quintal do Lobisomem", mantido pelo poeta Victor Alvim, capoeirista famoso no Rio de Janeiro, autor de diversos folhetos
:


A tradicional escola de samba Acadêmicos do Salgueiro acertou em cheio ao escolher o tema do seu próximo carnaval. A vermelha e branca tijucana vai levar para a avenida o enredo "Cordel Branco e Encarnado", de autoria de Renato Lage e Márcia Lage.

A escola pretende unir a arte dos poetas populares do Nordeste com o inconfundível batuque carioca. Sem esquecer das origens do cordel na Europa , que ressurgiu com toda a força no Nordeste em histórias que caíram no gosto popular, como "O Romance do Pavão Misterioso", obra que inspirou os carnavalescos a criarem a logomarca do enredo salgueirense.

A sinopse do enredo foi apresentada aos compositores no dia 14 de junho em reunião na quadra da Rua Silva Teles e surpreendeu a todos por ter sido escrita em forma de poema como um tradicional cordel. Tive a oportunidade de estar presente trocando informações com o carnavalesco Renato Lage, a diretoria cultural e parte da sua talentosa equipe, entre eles Gustavo Mello, Eduardo Pinto, Dudu Azevedo e Luciane Malaquias.

Como poeta popular, cordelista e membro da Academia Brasileira de Literatura de Cordel gostaria de parabenizar a Acadêmicos do Salgueiro por escolher um enredo que verdadeiramente aborde uma das maiores riquezas da nossa cultura popular brasileira.
 

E uma bela parceria está se iniciando entre estas duas academias: a do samba e a da literatura de cordel.
 

Confiram abaixo a sinopse na íntegra:


Salgueiro 2012
(Cheio de poesia, imaginação e encantamento)

Minha "fia", meu senhor
Deixa eu me apresentar
Sou poeta e meu valor
Vai na avenida passar
Basta imaginação
Um "cadim" de inspiração
Que eu começo a versar

Vou cantar a minha arte
Que nasceu bem lá distante
Num lugar que hoje é parte
Da nossa origem errante
Vim das bandas da Europa
Nas feiras, a boa trova
Era demais importante!

Foi assim que o mar cruzei
Na barca da encantaria
Chegou por aqui um Rei
Com bravura e poesia
Carlos Magno e o os doze pares
Desfilando pelos mares
Da mais real fidalguia

E veio toda a nobreza
Que um dia eu imaginei
Rainha, duque, princesa
E até quem eu não chamei:
Um medonho de um dragão
Irreal assombração
Dessa corte que eu sonhei

Também tem causo famoso
Que nasceu lá no Oriente
De um tal misterioso
Pavão alado imponente
Que cruza o céu de relance
Dois jovens, e um só romance
Vencendo o Conde inclemente

Todas essas histórias
Renasceram no sertão
Onde vive na memória
O eterno Lampião
E não houve um brasileiro
Que de Antônio Conselheiro
Não tivesse informação

Pra viajar no meu verso
É preciso ter "corage"
Vai que um bicho perverso
Surge que nem "visage"?
Nas matas sertão afora
Lobisomem, caipora
Que medo dessas "image"!!

Pra findar esse rebuliço
Rezar é a solução!
Valei-me meu "padim" Ciço!
Vá de retro, tentação!
Nossa Senhora eu não quero
(Tô sendo muito sincero)
Cair nas garras do cão!

E não é que meu santo é forte?
Cheguei ao céu divinal
É tamanha a minha sorte
A minha vitória afinal
É cantar com alegria
Fazer verso todo dia
Na terra do carnaval

Ao ver chegar a tal hora
Da minha "alegre" partida
Saudade, palavra agora
Tem posição garantida
Mas não se avexe meu irmão
Que hoje a coroação
Acontece é na avenida

Pois eles hão de herdar
Todo esse sertão sonhado
Monarcas que vão reinar
Na corte do Sol dourado
Poetas de tradição
Recebam de coração
Um cordel Branco e Encarnado

E agora eu vou sem medo
Fazer festa "de repente"
Vai nascer um samba-enredo
Pra animar toda a gente
Afinal, não sou melhor
Muito menos sou pior
Só um poeta diferente!


Renato Lage, Márcia Lage, Departamento Cultural

Fotos: Vicente Almeida e Gustavo Mello
Saiba mais notícias sobre a literatura de cordel no carnaval do Salgueirono site: www.carnavalesco.com.br

4 comentários:

  1. Concordo com o Lobisomem: o fato de uma agremiação de escola de samba, do Rio de Janeiro, escolher com temática a literatura de cordel, é fato ÚNICO. Isto é motivo para comemoração e não para censuras. A literatura de cordel está em seu apogeu, o que faz com que possa ser apropriada por outras corretes da cultura popular e, se foi de forma espontânea, mais enriquecedor para a comunidaade de poetas de corderl. Afinal, a literatura de cordel chega ao palco universal da Marques de Sapucaí. Ao invés de ficármos nos colocando numa posição defensiva, devemos procurar subsidiar, para que o expetáculo fique ainda melhor e mais brilhante.

    A verdadeira arte só é arte, quando pode ser referencial para todos, de todas as camadas sociais, raças, profissões e feitios. Não é à toa que que até os dias atuais os grandes escritores permanecem vivos e atuais e, nos tocam, nos referenciam e dizem de nossas emoções e vivências... O momento é de conquista, não de derrota. Se o samba não obedece os critérios de composição poética, não precisa - afinal, é samba-ennredo, com a temática da literatura de cordel, não ela própria. Vamos deixar o cordel embarcar nessa viagem misteriosa da Marques de Sapucai. Vamos deixá-lo voar e conquistar novos ares e novos terrenos... Quem sabe, daí sará o interesse formador de novos poetas que possam manter viva essa cultura literária que vem lá de idos tempos - passando de geração em geração e mantendo-se bela, homogenea e transcendente.
    Beijos, amigos e confrades,
    Maria Rosário Pinto

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  2. Rosário,
    esse é um assunto polêmico mesmo.
    Já dei uma olhada nos comentários postados no blog do Arievaldo (Acorda Cordel) e vi que há manifestações diversas, inclusive a sua.
    Em princípio, fico animado em ver que o cordel está conquistando tanto espaço, mas também tenho minhas preocupações.
    Temo que aconteça ao cordel o que aconteceu com o forró, o qual está altamente difundido, mas já quase ninguém lembra o que ele é.
    Por isso acho que, diante desse crescimento do cordel, está na hora de as pessoas interessadas na verdadeira Literatura de Cordel tomarem a iniciativa de realizar eventos, debates, seminários, programas de televisão.
    Talvez o ideal fosse a ABLC puxar o cordão, mas, não conheço internamente a entidade, para avaliar se ela teria força para isso.
    De qualquer forma, penso que qualquer movimento que se inicie nesse sentido sempre correrá o risco de sofrer com: a) a oposição de quem está satisfeito com a situação atual; e b) a infiltração de gente imediatista, que vai ver apenas alguma forma de ganhar algum dinheiro.
    De qualquer maneira, acho que ficar parado é muito pior.
    Acho que aqueles que se dedicam à Literatura de Cordel devem achar um jeito de ir às escolas, às universidades e à TV, trabalhando no sentido de que a Literatura de Cordel cresça, mas não desapareça, engolida (ou desfigurada) pela sua própria massificação.

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  3. Mairton,

    Partilho de suas preocupações, mas devemos pensar que temos poetas e pesquisadores suficientes para dar suporte a essas iniciativas. Já participei de muitas entrevistas em que procuro levar a fisionomia da literatura de cordel, com informações precisas e seguras. A ABLC e seu colegiado participam, com frequencia de documetários, entrevistas e outros eventos, sempre levando o debate para a mídia com informações abalizadas.

    Ano passado a ABLC em parceiria com o CNFCP realizou o II Encontro de Poetas Populares e Rodas de Cantoria;
    Apresentamos ao IPHAN, o pedido de Registro da literatura de cordel como Bem de Patrimônio Imaterial, que foi aceito. A próxima etapa será o preenchimento dos formulários e o levantamento das pesquisas para andar com o projeto. Nossa expectativa, na pesquisa, é a de ouvir, ouvir e ouvir os poetas e instituições de litetatura de cordel, nos principais estados de sua manifestação. A preocupação é também esta - a de não permitir desfiguração dessa forma de expressão popular, que atravessa séculos, pelo canal da oralidade, passando de geração em geração; acompanhando as tecnologias modernas, mas mantendo seus registros que, no Brasil, assumiu fisionomia própria.

    E, penso que as escolas de samba são muito criteriosas, afinal, os desfiles e sambas-enredos, na Marques de Sapucai, tem o objetivo de conquistar prêmios. Existe gente muito séria envolvida nas pesquisas e a ABLC e o CNFCP estão disponiblizando seus acervos para consultas.

    Precisamos deixar nosso PAVÃO MISTERIOSO VOAR! VOAR! VOAR!!!!
    Beijinhos,
    Rosário Pinto

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  4. Suas palavras são alentadoras, Rosário. Acho que estamos em sintonia.
    Por aqui, vamos tentando ajudar em alguma coisa também. Afinal, é grande quantidade de sites e blogs relacionados à Literatura de Cordel, o que nos dá a responsabilidade de ajudar a cuidar dela.
    Não posso encerrar sem manifestar meu reconhecimento a iniciativas como a das cirandas de cordel, promovidas por você e pela Dalinha, as quais, ao meu ver, fortalecem os laços entre os poetas e facilitam a comunicação entre eles.
    Que o nosso PAVÃO MISTERIOSO voe, voe, voe!
    Abraço!

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