terça-feira, 26 de junho de 2012

Um folheto de José Medeiros de Lacerda



A CRUZ DAS MOÇA
José M. Lacerda
Pescado do da Coluna "Repentes, Motes e Glosas", 
do Jornal da Besta Fubana

Como poeta de banca
Sempre tenho procurado
Mostrar casos do Nordeste
Ocorridos no passado
Esquecidos no presente
Pra o leitor ficar ciente
E eu ficar realizado.


Pra obter bom resultado
Eu destaco com eloquência
Os segredos da poesia
Demonstrando competência
Na maneira de agir
Procurando produzir
Da poética toda essência


Descrevo com veemência
Uma tragédia acontecida
Há muitos anos atrás
Nesta terra ressequida
Que na seca mata gente
E se chove causa enchente
Com gente desprotegida


Deus protege a nossa vida
Da forma que bem quiser
Mas às vezes cobra caro
A nossa falta de fé
Talvez para dissolver
A forma do “ver pra crer”
Do incrédulo Tomé


Na região de Sumé
Que São Tomé se chamava
No Cariri paraibano
Uma família passava
Por todos os sacrifícios
Desassossegos, suplícios
Que a seca lhes obrigava


77 chegada
No século mil e oitocentos
Com uma tão grande seca
Registrada em documentos
Que devassou o sertão
Acabando a criação
Causando grandes tormentos


Na pobreza os passamentos
Persegue-lhe a precisão
O sol racha a lama seca
Não há mais água no chão
Só resta aos sobreviventes
Reunir-se e pacientes
Começar a migração


Vem de outra região
Não muito longe dali
Pajeú pernambucano
Que é vizinho ao Cariri
A notícia de haver água
Lavando a seca e a mágoa
De quem pôde resistir


Deram então de sair
Em busca dessa riqueza
Rios Una e Pajeú
Por obra da natureza
Um com cacimba fluía
O outro ainda resistia
Tendo água em correnteza


Coragem, muita fraqueza
E predeterminação
Sem nada pra carregar
Nessa peregrinação
Se bateram em retirada
Pelas veredas e estradas
Do Cariri e sertão


Uma ou outra criação
Que ainda resistia
Serviam de alimento
Durante essa travessia
Uns, farinha e rapadura
Outros somente amargura
Temperava essa agonia


A família de Maria
Moça bonita e ordeira
Que residiam num sítio
Da região caririzeira
Com os filhos desprotegidos
Temiam dos seus queridos
Ver a hora derradeira


Ali naquela ribeira
Onde a família morava
Nem água nem alimento
Para ninguém mais restava
Perdendo a fé e a esperança
Pra fazer a tal mudança
Já todos se preparavam


Dois cavalos só restavam
Animais de montaria
Também com sede e famintos
Eram o que eles possuíam
No céu a lua prateada
Numa fria madrugada
Empreenderam a travessia


Num cavalo ia Maria
Levando seu irmãozinho
No outro com outra criança
Ia a mãe devagarinho
O pai com mais um irmão
Enfrentando o pó do chão
Queimavam os pés no caminho


Nos outros sítios vizinhos
Já ninguém mais existia
Somente casas fechadas
Cheias de monotonia
E currais abandonados
Seus donos tinham migrado
Seguindo a mesma agonia


No fim do primeiro dia
Sem poder suportar mais
De fome, sede e fadiga
Morre um dos animais
Só restando o de Maria
Também já sem energia
Tremendo nos carrancais


Pesadelos infernais
Toda a noite os dominara
Ali mesmo onde dormiram
Ladeando uma coivara
Bem na beira do caminho
No outro dia cedinho
A viagem continuara


Maria se preparara
Para seguir caminhando
Sua mãe sem o cavalo
Também seguiria andando
E a meninada iria
No dorso da montaria
Que seguia tropeçando


Quando o sol foi esquentando
Queimando a sola dos pés
A criançada chorosa
Devido a tanto revés
O suor lavando a cara
Da miséria sanguinária
Daqueles pobres fiéis


Suportando esse revés
Também o mato apitava
No alto da serrania
Que a estrada ladeava
Era o aviso da cigarra
Que ali naquela piçarra
Nem lagartixa se achava


Maria desanimava
Vendo a família sofrer
Parou sua caravana
E então resolve descer
Um regato, um seco leito
Tentando de qualquer jeito
Encontrar o que comer


Veio a se comprometer
Que depois os seguiria
Eles iam no caminho
Ela a serra subia
Se não encontrasse nada
Se encontrava na estrada
Com eles no fim do dia


E foi assim que Maria
Da família se perdeu
Embrenhou-se na caatinga
Pelo riacho desceu
Deixando a serra pra trás
Só ossada de animais
Que pela seca morreu


Nesse dia não comeu
Dormiu na areia fina
No outro dia cedinho
recomeça a travessia
Cheia de mágoa e desgosto
Tentava lamber do rosto
O suor que lhe escorria


Viva alma ali não via
Sozinha em sua aflição
Cada vez mais se afastava
Perdida no socavão
Quase não mais caminhava
As forças lhe abandonava
Total desidratação


Mais um dia de aflição
Outra noite de tormento
O corpo todo tremia
De frio, mesmo sem vento
Suor não mais transpirava
Rasgando a roupa tentava
Tomá-la por alimento


Já caída em passamento
Dali não mais levantou-se
Mastigando um lenço sujo
Logo a boca retesou-se
Outra noite e outro dia
Entra pra história Maria
E sua vida findou-se


Melhor que a história fosse
De outra forma contada
Sabemos que nossa vida
Nesta terra é limitada
Se somos todos iguais
Pra que uns sofrer demais
E outros não sofrer nada?


Aquela desventurada
Que rezou tanto na vida
Com fé em Nossa Senhora
Pela fome foi vencida
Sempre conviveu com os seus
Lembrando o nome de Deus
E foi por Ele esquecida


Na paisagem ressequida
Seu corpo ficou secando
Sua família distante
Pela filhinha esperando
Passaram um dia acampados
Já quase desenganados
Continuaram viajando


E foram se aproximando
Das planícies pajeús
Deixando atrás a caatinga
Da serra dos Sucurus
Já mato verde avistava
E ao longe se escutava
O canto dos inhambus


Em campos cheios de luz
Sentiram felicidade
Porém lembrando da filha
Todos sentindo saudade
Sem desconfiar por certo
Que ela fora a céu aberto
Vítima da fatalidade


Duas semanas mais tarde
Urubus denunciaram
A matéria decomposta
Que a eles alimentaram
Foi assim que caçadores
E outros agricultores
O corpo morto encontraram


Ali mesmo a enterraram
Junto a grandes alcantis
Ficando essa nódoa triste
No riacho dos Cariris
Que tantas cheias botou
E na seca testemunhou
Esse cenário infeliz


Deus, o Supremo Juiz
Que só justiça produz
Não puniu uma inocente
Apenas mostrou-lhe a luz
Lhe dando o caminho certo
Pra se lhe livrar do deserto
Da serra dos Sucurus


Marcaram com uma cruz
O lugar que ela morreu
E onde foi sepultada
Cumprindo o destino seu
Dali pro reino da Glória
Segundo os anais da história
Que sabem mais do que eu


No outro ano choveu
Volta o verde novamente
A água enche os riachos
Deixando o povo contente
Maria foi esquecida
Só restando a cruz erguida
Naquele meio ambiente


Nunca mais um seu parente
No Cariri retornou
Se viveram, se morreram
A ninguém mais importou
Rotina virou constância
Maria virou lembrança
E a vida continuou


Pouco tempo se passou
Nas terras de São Tomé
— O santo do ver pra crer —
Que depois virou Sumé
Aonde toda criança
Nasce e cresce com esperança
E se envelhece com fé


Se remar contra a maré
É o destino da pobreza
Ter fé nas coisas do mundo
É dos pobres a grandeza
Nesse torrão nordestino
Crer nas obras do Divino
Faz parte da Natureza


Por aquela redondeza
De cima a baixo corria
A notícia de milagres
Naquela cruz de Maria
E de conversa em conversa
Só se falava em promessas
Que a moça resolvia


Começou a romaria
Numa peregrinação
Para o sítio Cruz da Moça
Com novena e oração
Pedidos se realizavam
Curas se concretizavam
E assim virou tradição


As terras da região
Foram se valorizando
Cidades foram nascendo
Povoados se formando
Novas secas ocorreram
Porém nunca mais sofreram
Como aquele ano nefando


O povo sempre adorando
Rezando, pedindo luz
A cidade do Amparo
Que é a mais próxima da cruz
É uma terra querida
Por Maria protegida
São Sebastião e Jesus


Jesus que a todos conduz
São Sebastião o patrono
Maria a mártir da seca
Que pereceu no abandono
A cruz é a tradição
Fincada lá no grotão
No riacho como um trono


Dormindo o eterno sono
A moça ainda está lá
Nossa vida continua
Como o sistema deixar
Uns com muito outros sem nada
Pobre na vida regrada
E o rico a desperdiçar


Pobre logo ao despertar
Ainda na escuridão
Tem que render homenagem
Ao avarento patrão
E vai pra luta sonhando
Pedindo prece e rezando
Ao santo de devoção


Na abastança ou precisão
Se tem muito ou se não tem
Para a morte não tem chance
Se ela vem buscar alguém
De quem precisa por certo
Esteja distante ou perto
Não discrimina ninguém


Se escrevi mal ou bem
Se usei vocábulo raro
Na poesia de cordel
Qualquer assunto eu encaro
Em Sumé dos Sucurus
Pedi licença a Jesus
Para falar sobre a Cruz
De Maria do Amparo.

Um comentário:

  1. barauna cordelista
    é meu nome sem acento
    ao postar comentario
    agora neste momento
    me compraso com alegria
    com acruz das moça e maria
    e todo seu sofrimento.12/06/2013.pilões-pb.

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