PEQUENA TRAGÉDIA NARRADA DO FINAL PARA O COMEÇO
Marcos Mairton
E tudo acabou ali. O corpo de um homem caído ao chão, morto, estendido ao longo do meio-fio de uma movimentada rua da cidade. Chamava-se Jorge. Fora atropelado. O carro que o atingiu havia se afastado rapidamente, em fuga. As pessoas que se aglomeravam em volta do corpo comentavam como tudo tinha acontecido.
– Foi muito rápido. Acho que o carro nem freou...
– Alguém anotou a placa?
– Parece que era 2501... Ou 2510, não sei...
Alguém observou que Jorge teria tentado atravessar a rua, mas estava olhando para o lado contrário àquele de onde vinham os carros. Andava depressa, quase correndo, como se perseguisse alguém, quando o acidente aconteceu.
De fato. As pessoas que estavam ali não sabiam, mas Jorge tentava alcançar Sonia. Seguia-a desde o estacionamento de um shopping próximo dali. Ela havia chegado em um carro preto, com vidros escuros que impediam a identificação do homem que estava à direção. Quando o carro se afastou, ela olhou para trás e deu de cara com Jorge, que a observava à distância.
Foi um choque. Jorge havia estacionado seu próprio carro e se dirigia para os elevadores do shopping, quando viu Sonia desembarcar. Antes de fechar a porta e se afastar, ela inclinou-se para dentro do carro. Mesmo de longe, Jorge pôde ver que se tratava de um beijo de despedida.
Mas, na verdade, aquela cena não havia sido totalmente uma surpresa para Jorge. Nos últimos dias, ele tinha estado nervoso, acompanhando cada vez mais de perto os passos de Sonia. Ficava atento às ligações que ela recebia no celular, para ver se percebia algo de suspeito. Mesmo quando as conversas dela ao telefone eram sobre os preparativos do casamento, ele disfarçava e ficava ouvindo, tentando identificar alguma linguagem em código. Jorge tinha ciúme de Sonia, e esse ciúme havia evoluído para a desconfiança. Certa vez havia dito para ela, em tom de brincadeira, mas segurando fortemente o seu braço:
– Se um dia vir você com outro, mato os dois. Primeiro você, depois ele.
– Que é isso, Jorge? Você está louco? – dissera ela sorrindo, mas sentindo que havia algo de verdadeiro na advertência que lhe fora feita.
Sonia sabia que Jorge andava desconfiado. Também sabia que havia motivo para isso. Era uma situação que já se arrastava há algum tempo. Estavam noivos há mais de um ano, mas, nos últimos dois ou três meses, Jorge notara comportamentos estranhos em Sonia. Já não mostrava tanta empolgação quando falava do casamento, diminuíra a quantidade de vezes que ia ao futuro apartamento do casal e – o mais sintomático – comumente deixava de atender as ligações de Jorge para seu celular, retornando apenas horas depois, sempre explicando que deixara o aparelho na bolsa ou estava em alguma situação que não podia atender. Jorge tentava não demonstrar, mas essas justificativas não o convenciam, especialmente porque, quando os dois estavam juntos, Sonia nunca deixava o celular tocar mais que três vezes. O mais comum era atender ao primeiro toque, deixando transparecer certa ansiedade, ainda que contida.
Tudo isso fazia com que Jorge já não visse em Sonia aquela noiva apaixonada de poucos meses atrás, que falava com ele quase o tempo todo sobre o casamento e mostrava com alegria pequenos utensílios comprados para a composição de seu futuro lar. Bandejas, pratos, copos, coisas às quais Jorge não dava a menor importância, embora procurasse demonstrar atenção quando ela exibia e explicava como cada objeto seria usado depois que estivessem casados. Fosse Jorge dotado dessa capacidade que as mulheres têm de se concentrar em detalhes, talvez houvesse observado que, aos poucos, a única parte do casamento que passara a merecer toda a atenção de Sonia era a programação musical da festa. Quase todo o dia ia à casa do cantor e produtor musical Giovanni Ramos, lá permanecendo por horas a fio, às vezes a tarde inteira.
Jorge não tinha conhecimento da frequencia com que Sonia se encontrava com Giovanni, embora já houvesse acontecido de procurá-la em casa e obter a informação de que ela teria ido à casa do músico.
– Fui pegar o DVD de um casamento onde ele se apresentou. Eu nem ia entrar, mas a namorada dele estava e me convidou para ver o filme com ela...
Jorge, que por esse tempo ainda não havia começado a desconfiar de Sonia, acreditou. Até ficou aliviado por não ter que assistir a mais uma cerimônia de casamento ao lado de Sonia, mormente quando o objetivo era apenas observar detalhes da decoração e das roupas, já que os noivos eram pessoas que eles nem conheciam.
Além do mais, Jorge dava-se muito bem com Giovanni. Foi ele quem apresentou o cantor à noiva. Uma de suas raras intervenções na organização da festa de casamento foi exatamente sugerir a contratação do músico para cantar na cerimônia.
Naquela noite, o casal recebera Giovanni na casa da mãe de Sonia e, enquanto os três estavam reunidos, Sonia sugeria as músicas mais românticas que conhecia. Giovanni não se furtava a interpretar trechos de algumas delas, às vezes ao violão – que sempre levava consigo nessas ocasiões – às vezes sem acompanhamento algum, “na capela”, como os artistas costumam falar. Era nesses momentos, quando apenas sua voz solitária ecoava pela casa, que Sonia mais se emocionava.
Foi no meio de uma dessas canções que Jorge afastou-se para atender ao telefone e o olhar de Giovanni se encontrou com o de Sonia por alguns segundos. Tempo suficiente para fazer disparar a série de acontecimentos que levaria à morte de Jorge dali a alguns meses.
Houvesse imaginado que isso poderia acontecer, Jorge jamais teria convidado Giovanni para ir à casa de sua futura sogra naquela noite. Os dois haviam se conhecido no dia anterior, pela manhã, quando Jorge levara seu carro para fazer uma revisão e aguardava o transporte que o conduziria para casa. Giovanni estava ali pelo mesmo motivo.
Antes de entrarem na van da concessionária, já haviam conversado o suficiente para Jorge saber que estava diante do cantor Giovanni Ramos, de quem Sonia havia falado há alguns dias, dizendo que o vira em uma apresentação no casamento de uma amiga e gostara muito.
– Rapaz, você tem que vir à casa de minha sogra! Minha noiva não vai acreditar nessa coincidência! – convidou Jorge, animado com a surpresa que faria a Sonia.
– Vou sim. Se depender de mim, vocês casam ao som da minha banda!
Era realmente uma grande coincidência. Justamente ele – que, apesar de querer muito casar com Sonia, não levava o menor jeito para a organização da festa – conhecer casualmente e se afinar tão bem com o cantor que ela tanto gostaria que participasse de seu casamento.
Mas aquela não havia sido a única coincidência daquele dia. A primeira havia acontecido quando Giovanni chegou à concessionária dirigindo um carro parecidíssimo com o de Jorge, um Corola preto, com vidros escuros. Percebendo a semelhança entre os dois automóveis, Jorge aproximou-se e comentou com o recém chegado:
– Bom dia, amigo! Desculpe eu estar olhando assim para o seu carro, mas é que estou impressionado com a semelhança com o meu. Aquele que está estacionado ali...
– É verdade. Mas aqui na concessionária aparecem muitos desses, não?
– Imagino que sim. Mas o seu tem outro detalhe que chamou mais ainda a minha atenção. Vou casar daqui a seis meses e minha noiva acabou de me ligar confirmando que já reservou a igreja. Pois não é que os números da placa do seu carro formam exatamente a data do casamento?!
– Vinte e cinco de janeiro? – admirou-se Giovanni.
– Exatamente. Vinte e cinco de janeiro...
Foi assim que tudo começou.
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