quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Relatório de Inquérito Policial em Versos



SOBRE O RELATÓRIO DE 
INQUÉRITO POLICIAL EM VERSOS

Liguei a TV e deparei-me com a notícia de que um delegado havia feito um boletim de ocorrência em versos. 

Na reportagem, o apresentador do telejornal dizia que o delegado havia se inspirado na Literatura de Cordel, tendo herdado do avô o dom de fazer versos.

Só para confirmar se o fato havia ganho espaço na mídia, entrei no Google e pesquisei as palavras “delegado”, “ocorrência”, “versos” e “cordel”. Como eu esperava, lá estavam inúmeros sites replicando a matéria, começando mais ou menos assim:

O delegado Reinaldo Lobo, da 29º Delegacia de Polícia de Riacho Fundo (DF), cidade a 18 km de Brasília, fez um boletim de ocorrência que chamou a atenção não pelo caso, de receptação de uma moto, mas pela redação. O texto foi escrito em forma de poesia. (R7 Notícias).

Diante da amplitude que o caso ganhou, aproveito minha condição de poeta-juiz (ou de juiz-poeta) para comentá-lo sob dois aspectos: do Direito e da Literatura de Cordel.

Do ponto de vista jurídico, a primeira coisa que percebi foi que não se tratava de um B.O. e sim do próprio Relatório, com o qual delegado encerra o inquérito para remeter ao Ministério Público, a fim de que este ofereça a denúncia.


É o caso de esclarecer, portanto, que no B.O. quem narra os fatos é a pessoa que o registra, cabendo à autoridade policial apenas transcrevê-los para o documento. Já no relatório, o texto é elaborado pelo delegado, sendo este o responsável por seu conteúdo. Ou seja, a partir do B.O. o delegado inicia o inquérito, com o Relatório o delegado o encerra.


Isso muda alguma coisa quanto a sua validade jurídica? Não, porque não existe nenhuma norma que proíba que atos administrativos e até judiciais sejam redigidos em versos. O que se exige é que eles sejam escritos na língua pátria – o português – e que contenham as informações previstas em lei, no caso do Relatório, coisas como a qualificação do ofendido, a qualificação ou descrição do suposto autor do crime e a narração do fato.

Eu mesmo já sentenciei dois casos em versos, um criminal (que virou folheto e está publicado neste Mundo Cordel) e outro cível, e as sentenças tiveram o mesmo valor jurídico que as outras que já proferi em prosa. E não poderia ser de outra forma, pois, se a sentença tem relatório (descrição dos fatos), fundamentação (razões que levaram ao resultado) e dispositivo (resultado), não faz diferença se foi escrita em prosa ou em verso.

Da mesma forma, o fato de ter sido escrito em versos jamais poderia ser motivo para invalidar o Relatório do Inquérito.

A partir daqui, passo a falar como cordelista, e o faço destacando o fato de o delegado Reinaldo Lobo ser capaz de fazer brotar sua vocação poética até em meio à dura realidade da atividade policial. É preciso ter um coração de poeta para agir assim.

Apenas quanto à forma, observo que o sistema de rimas e de métrica está muito irregular, o que afasta o texto dos padrões reconhecidos como característicos da tradicional Literatura de Cordel.

Assim, se fosse o caso de dizer algumas palavras ao poeta-delegado, diria o seguinte: “Colega poeta, a poesia é uma flor bela e delicada, mas que às vezes brota em lugares improváveis, entre pedras e espinhos. Se sua intenção é escrever em forma de Cordel, estude um pouco mais os sistemas de rimas e métricas da Literatura de Cordel, para dar um padrão mais definido aos seus versos. Independentemente disso, não desista da poesia, nem de tentar fazer do nosso país um lugar melhor para se viver”.

Segue, a íntegra do texto do BO:

Já era quase madrugada
Neste querido Riacho Fundo
Cidade muito amada
Que arranca elogios de todo mundo


O plantão estava tranquilo
Até que de longe se escuta um zunido
E todos passam a esperar
A chegada da Polícia Militar


Logo surge a viatura
Desce um policial fardado
Que sem nenhuma frescura
Traz preso um sujeito folgado


Procura pela Autoridade
Narra a ele a sua verdade
Que o prendeu sem piedade
Pois sem nenhuma autorização
Pelas ruas ermas todo tranquilão
Estava em uma motocicleta com restrição


A Autoridade desconfiada
Já iniciou o seu sermão
Mostrou ao preso a papelada
Que a sua ficha era do cão
Ia checar sua situação


O preso pediu desculpa
Disse que não tinha culpa
Pois só estava na garupa


Foi checada a situação
Ele é mesmo sem noção
Estava preso na domiciliar
Não conseguiu mais se explicar
A motocicleta era roubada
A sua boa-fé era furada


Se na garupa ou no volante
Sei que fiz esse flagrante
Desse cara petulante
Que no crime não é estreante


Foi lavrado o flagrante
Pelo crime de receptação
Pois só com a polícia atuante
Protegeremos a população


A fiança foi fixada
E claro não foi paga
E enquanto não vier a cutucada
Manteremos assim preso qualquer pessoa má afamada


Já hoje aqui esteve pra testemunhá
A vítima, meu quase xará
Cuja felicidade do seu gargalho
Nos fez compensar todo o trabalho


As diligências foram concluídas
O inquérito me vem pra relatar
Mas como nesta satélite acabamos de chegar
E não trouxemos os modelos pra usar
Resta-nos apenas inovar


Resolvi fazê-lo em poesia
Pois carrego no peito a magia
De quem ama a fantasia
De lutar pela Paz ou contra qualquer covardia


Assim seguimos em mais um plantão
Esperando a próxima situação
De terno, distintivo, pistola e caneta na mão
No cumprimento da fé de nossa missão


Riacho Fundo, 26 de Julho de 2011

16 comentários:

  1. Olá Mairton,
    É bem curioso este relatório em versos que fogem a mesmice que não atrai. Este realmente prende.
    Você discorre sobre o assunto com elegância e conhecimento.
    Não desabona a idéia e achando o tema interessante, sugere, sem ferir, ao delegado cordelista, que se aprimore na arte de escrever cordel.

    Veja na internet “Habeas Pinho” também referente a essa temática. É uma beleza!
    Um abraço,
    Dalinha

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  2. No livro do grande folclorista cearense EDUARDO CAMPOS "Cantador, musa e viola", de 1973, encontramos uma defesa diante de um juri popular, feita pelo poeta Raimundo Marreiro, de Canindé-CE. Trata-se de "A DEFESA DO NÓ DE CANA". Oscar de Tal, o Nó de Cana, foi absolvido graças a essa peça jurídica em cordel, feita ainda na década de 1960. Como se vê, o cordel do delegado não é novidade. Muito bom o texto do poeta-juiz Marcos Mairton. Está reproduzido também no meu blog: www.acordacordel.blogspot.com

    ARIEVALDO VIANA

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  3. Melhor soltar o ladrão
    Que roubou motocicleta.
    Em seu lugar o poeta
    É que merece prisão.
    O delegado escrivão
    Que se fez de menestrel
    Praticou feio papel
    Com seu poema asqueroso,
    Praticou crime doloso
    Assassinando o Cordel.

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  4. Mas que falta está fazendo
    Nosso Kid Morengueira!
    Pra peguar essa besteira
    Do delerusca escrevendo…
    Esse seu “poema” horrendo,
    Feito em coma de pileque,
    O Morengueira moleque,
    É claro, aproveitaria
    E no momento faria
    Um lindo samba de breque!...

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  5. O cordel está na moda
    E isto me preocupa
    Todo mundo na garupa
    Pensa que é samba-de-roda
    Isso muito me incomoda...
    Fazem "versos" a granel
    Oh! meu caro bacharel
    Volte a prender vagabundo
    Não tolde o Riacho Fundo
    Assassinando o Cordel.

    Valentim Cordeiro Brabo

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  6. O CORDEL É DOM DIVIVNO
    PRA QUEM VIVE APAIXONADO
    POIS VALEU SEU DELEGADO
    TER PRENDIDO ESSE MENINO
    QUEM FAZ UM ATO TRAQUINO
    TEM QUE IR PARA PRISÃO
    SÓ QUEM ERRA DESANIMA
    CONTINUE FAZENDO RIMA
    QUE É FRUTO DO CORAÇÃO.

    Guibson Medeiros.

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  7. O CORDEL É DOM DIVINO
    PRA QUEM VIVE APAIXONADO
    POIS VALEU SEU DELEGADO
    TER PRENDIDO ESSE MENINO
    QUEM FAZ UM ATO TRAQUINO
    TEM QUE IR PARA PRISÃO
    SÓ QUEM ERRA DESANIMA
    CONTINUE FAZENDO RIMA
    QUE É FRUTO DO CORAÇÃO

    Guibson Medeiros

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  8. O delegado não disse
    Que fez versos em cordel.
    Nele teve inspiração,
    Passando para o papel.
    Se ele só quebrou rotina
    Esta censura é cretina
    Apenas destila fel.

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  9. Eu creio que o juíz devolveu por não ser um cordel...abçs e paz.

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  10. Caro poeta juiz, Marco Mairton,
    Elegante, como sempre. Excelente comentário sobre a composição livre do poeta-delegado. Não devemos execrar e sim estimular. Ele já tem o gosto, só precisa do conhecimento específico da formatação dos versos, métricas e rimas, se pretender mundar da poesia livre para a de cordel. Cabe orientar, indicar e estimular.
    Um abraço,
    Rosário Pinto

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  11. Mailton,

    O delegado marcou
    Um ponto em seu relatório
    Mesmo sendo tão simplório
    Quando, o poema, criou.
    Ele não nos encantou
    Por desconhecer a métrica.
    Não desenhou a estética,
    Que o cordel nos pede, em mão;
    Porém, mostrou pra nação
    A sua verve poética.

    Um abraço.

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  12. Caros amigos,
    agradeço-lhes pela visita e comentários neste Mundo Cordel.
    Como era de se esperar, há diversas formas de ver a mesma situação.
    Respeito cada uma das opiniões expressadas e mantenho a minha, a qual já expus na postagem, ou seja, os versos de Reinaldo Lobo afastam-se da forma adotada na Literatura de Cordel, mas nem por isso deixam de revelar sua sensibilidade e inclinação para a poesia.
    Abraços a todos.

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  13. Realmente o poema do delegado não pode ser considerado um cordel, entretanto a Globo vendeu como se fosse e até convidou o repentista Chico de Assis, atual presidente da Casa do Cantador de Brasília, para apresentá-lo na TV. Chico Repentista, profissional consciente e zeloso pela nossa profissão alegou que não podia cantar da forma que estava escrito e acabou refazendo quase todos os versos. Basta comparar o áudio com o texto original para observar essas mudanças.
    Devo dizer que concordo com o poeta Mairton. A iniciativa do delegado merece aplausos e se ele quiser continuar escrevendo, pode pegar boas dicas com cordelistas em atividade. O projeto Acorda Cordel na Sala de Aula existe para isso.

    ARIEVALDO VIANA

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  14. Caros amigos poetas,
    É isto aí, antes de degradar, devemos orientar e indicar fontes de pesquisas e, estas, não nos faltam. Há inúmeros sites e blogs sérios sobre literatura de cordel que podem servir como ferramentas de busca. Como dizia o nosso sempre Rodolfo Coelho, Cavalcante, em nota publicada pelo Correio popular, de Campinas, 1982, em que diz:

    “Não adianta escrever poemas, trovas ou estrofes que não sejam em sextilhas, setilhas, décimas, setissilábicas ou em decassílabos, e vir dizer que é Literatura de Cordel. Muitos eruditos andam escrevendo opúsculos até em prosa dizendo ser Literatura de Cordel.
    Quando os versos são compostos em forma de narrativa, tem de ser em sextilhas […]. E assim o poeta vai continuando a sua narração até completar 8, 16 ou mesmo 32 páginas – as mais usadas. Em cada página cabem cinco estrofes [sendo em sextilhas]. Na primeira, apenas quatro – para que o título da história, do folheto ou do romance fique mais destacado, bem como o nome do autor […].
    O tamanho do folheto não deve ultrapassar 11-16cm. Quando maior ou menor, perde sua característica de cordel.
    Não adianta o poeta mostrar eruditismo sem colocar as palavras difíceis em seus respectivos lugares. O cordel sempre foi um veículo de aceitação nos meios rurais e nas camadas chamadas populares, porém precisa arte e técnica de quem escreve. Um folheto mal rimado e desmetrificado é um dinheiro perdido de quem empresa a sua edição. Existem folhetos que se tornam clássicos, quer pelo seu conteúdo, quer pela sua versificação. Precisa também muito cuidado na colocação do título, que deve ser rápido, sucinto e, ter seu “ponto focal” de atração para os leitores”. Espero estar contribuindo para esclacer e estimular novos leitores e, quem sabe novos poetas de cordel. VALE A PENA ESTIMULAR!

    *
    A poesia é livre
    Ele não merece prisão.
    É um delegado íntegro,
    Pra que tanta confusão
    Poetar é coisa aberta
    A toda a população

    Abraço,
    Rosário Pinto

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  15. Continui o delegado
    sua poesia fazendo
    prendendo quem está devendo
    ou praticou algo errado;
    sendo ele estimulado
    atingirá sua meta
    versará em linha reta
    com verso metrificado
    que poderá ser chamado
    de delegado poeta.

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  16. Um professor de Direito Penal do meu tempo de faculdade, Paulo Olímpio Gomes de Souza, certa vez declamou versos para exemplificar que o casamento do réu com a vítima de crime de sedução o liberava da pena. Por sorte, encontrei os versos na Internet, neste endereço:

    http://sandersonmoura.blogspot.com.br/2010/02/o-pedido-de-um-promotor.html

    Conta-se que o jovem promotor de Justiça de São Borja, RS, Paulo Olímpio Gomes de Souza recebeu inquérito policial sobre sedução ocorrido na Comarca.

    Ora, o indiciado que tinha "feito mal" à moça, para evitar a cadeia, casou com a vítima. Paulo Olímpio, então, dirigiu-se ao juiz Péricles Mariano da Rosa pedindo o arquivamento do caso, em quatro espirituosas quadrinhas:

    Em casando o indiciado
    com a dita ofendida,
    ficou a ação do estado
    prejudicada e tolhida.

    Não há mais o que punir,
    diz o penal mandamento.
    Quando o ato de se unir
    se consagra o casamento.

    Arquive-se, pois, o processo,
    deixe-se isento o rapaz.
    Que tenha muito sucesso
    e na vida encontre paz.

    Ele até merece o céu
    por gesto tão desvalido.
    Trocou sua desdita de réu
    por uma maior... de marido!

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